terça-feira, 8 de julho de 2014

Os Manuscritos Irlandeses Medievais e a Mitologia

(Por Laise Ayres)


página com iluminuras do Livro de Leinster
É sabido que os ancestrais irlandeses, tanto o povo sem nome que ergueu as dúzias de cairns espalhados por toda a ilha (incluindo o maior e mais famoso de todos, Newgrange) e os dólmens e menires que tanto marcam a paisagem, quanto os povos posteriores, incluindo as tribos encontradas já depois de Cristo e descritas por Ptolomeu em sua Geografia, não apresentam evidências de uso abrangente de nenhuma forma de escrita. Em 43 d.C., quando o Império Romano conquistou o território da Britânia, assim como já havia conquistado boa parte da Europa, tanto a Irlanda quanto a Escócia permaneceram por conquistar. Portanto, e apesar das relações mercantilistas que sempre se mantiveram entre as ilhas  (e apesar das curtas inscrições de Ogham em pedras espalhadas pela ilha e datadas a partir de 300 d.C.) , a escrita só chegou oficialmente à Irlanda junto ao Cristianismo, que foi quando começou a se escrever em irlandês.
O Cristianismo chegou à Irlanda pouco antes do século V d.C., provavelmente através dessas interações de comércio com o território conquistado pelos romanos. Contudo, o primeiro registro oficial de um emissário da religião na Irlanda deu-se em 430 d.C., quando o bispo Palladius foi enviado pelo Papa para “levar a fé de Cristo para os escotos”. Este bispo, entretanto, ficou muito pouco em terras irlandesas e não chegou a realizar nada de significativo em termos de conversão do povo à religião, e em 432 o Papa enviou ao invés aquele que seria conhecido como o “Apóstolo da Irlanda”, ninguém menos que São Patrício.
Coube a São Patrício converter a Irlanda, portanto, ao Cristianismo, missão que ele levou a cabo pois diz-se que, antes de sua morte em 493, o bispo Patrício construiu 365 igrejas e consagrou o mesmo número de bispos, estabeleceu escolas e conventos, e manteve sínodos.
Nesta época era muito comum que monges cristãos dedicassem sua vida à cópia de livros, não só de textos sagrados, como também de textos mundanos, que se quisesse preservar ou simplesmente compartilhar. Esses monges copiavam os livros, centenas e centenas de páginas, palavra por palavra, e os enfeitavam com iluminuras, pinturas complexas que adornavam letras capituladas e bordas de página, e ilustrações. Como suporte era utilizado pergaminho, um material caro que consistia em pele de carneiro ou de cabra tratada para este fim – e o pergaminho considerado mais fino e de maior valor era o velino, feito com pele de cordeiro ou bezerro. As tintas utilizadas eram manufaturadas artesanalmente, utilizando pigmentos naturais, sejam vegetais ou minerais. Era um trabalho feito à mão, muito detalhado e complexo, cuja perfeição fazia com que muitos dias fossem necessários para se acabar um livro e, por isso, o resultado final tinha muito valor. As encadernações eram normalmente primorosas, belíssimas, com capas de madeira ou couro, e algumas chegavam até mesmo a ser adornadas com metais e pedras preciosas.
Alguns dos manuscritos medievais irlandeses mais antigos são da época de São Patrício, e dois deles, escritos em latim pelo próprio santo, são considerados os mais antigos de que se tem notícia, e cópias destes foram preservadas para a posteridade no Livro de Armagh. O Livro de Armagh, que se encontra atualmente na biblioteca da Trinity College, em Dublin, é um manuscrito do século IX e encontra-se quase que inteiramente em latim, embora algumas partes em irlandês antigo sejam consideradas alguns dos exemplares mais antigos nesta língua.  Este documento é considerado relevante tanto por incluir textos tão antigos de São Patrício, como também por ser um dos mais antigos manuscritos insulares a conter uma cópia quase integral do Novo Testamento.
Com a invasão de Roma pelos bárbaros, a tradição literária e cultural em boa parte da Europa foi arrasada. Os godos, vândalos e ostrogodos não estavam exatamente interessados em Tácito e nos diálogos de Platão, e consequentemente não se preocuparam em resgatar as cópias de seus livros das bibliotecas que destruíram. Romanos tiveram que escapar das cidades para ir viver em pequenos povoados onde havia bem menos chance de educação, letramento e cultura. A preservação da cultura ocidental, na época, recaiu sobre os monges copistas que, refugiados em locais distantes desses conflitos com os bárbaros, trataram de assumir para si a tarefa de não deixar que tanto conhecimento se perdesse. Um desses locais afastados era justamente a Irlanda.
A questão é que há fortes indícios de que esses monges copistas possuíam no mínimo um enorme respeito pelo conhecimento e pela preservação do mesmo. E na Irlanda isso significou que, além de realizarem cópias das escrituras, de vidas de santos e outros textos sagrados, além de, é claro, a já mencionada tradição literária e cultural européia, os monges irlandeses começaram a registrar também a cultura local. Em irlandês. Eram contos, mitos e lendas, história e genealogias, leis e tradições, todo um conhecimento que, até então, tinha sido relegado à oralidade.
O mais antigo livro dessa literatura mista que sobreviveu até os dias de hoje foi transcrito por volta de 1100 e está na Royal Irish Academy, o Livro de Dun Cow (Lebor na hUidre). Feito em velino, ele está infelizmente em péssimo estado de conservação, com muitas páginas faltando, e quase nenhum dos textos encontra-se completo. Apesar disso, ele é muito valoroso para quem estuda a mitologia irlandesa (principalmente o Ciclo de Ulster, que conta as histórias do herói Cúchulainn), pois inclui versões (incompletas) de contos como O Roubo do Gado de Cooley (Táin Bó Cúailnge), A Intoxicação dos Homens de Ulster (Mesca Ulad), O Roubo do Gado de Flidais (Táin bó Flidais) e  O Banquete de Bricriu (Fled Bricrenn). Além desses, também do Ciclo de Ulster, estão presentes contos (completos) como O Cortejo de Emer (Tochmarc Emire), O Nascimento de Cúchulainn (Compert Con Culainn, copiado do perdido Livro de Druimm Snechta), A Doença de Cúchulainn (Serglige Con Culainn, copiado do perdido Livro Amarelo de Slane), A Genealogia de Cúchulainn (De genelogia Con Culaind), A Carruagem Fantasma de Cúchulainn (Siaburchapat Con Culaind, um conto em que São Patrício chama o herói de volta do seu túmulo para convertê-lo ao Cristianismo) e o poema Os Lugares onde se encontram as cabeças dos heróis do Ulster (Inna hinada hi filet cind erred Ulad).
De fora do Ciclo de Ulster, o Livro de Dun Cow ainda conta com histórias dos ciclos Mitológico - O Cortejo de Étain (Tochmarc Étaíne), A Destruição da Hospedaria de Dá Derga (Togail bruidne Dá Derga), e o curioso A História que Tuan mac Cairill contou a Finnian of Moville (Scél Tuain meic Cairill do Finnen Maige Bile, em que um sobrevivente da primeira invasão da Irlanda conta a respeito das invasões subsequentes), todos incompletos -, Feniano - A Causa da Batalha de Knock (Fotha catha Cnucha, que inclui o nascimento de Fionn Mac Cumhaill), A Causa da Expulsão dos Déisi para o Munster e a Morte de Cormac Mac Airt (Tucait innarba na nDessi i mMumain ocus aided Chormaic) e A história que confirma que Mongán era Fionn Mac Cumhaill e a morte de Fothad Airgthech (Scel asa mberar combad hé Find mac Cumaill Mongáin ocus aní día fil aided Fothaid Airgdig), todos completos, – e também um par de Ímmrama (viagens ao Outro Mundo), ambas incompletas, A Viagem de Bran filho de Febal (Immram Brain mac Febail) e A Viagem de Máel Dúin (Immram curaig Mail Dúin).

detalhe de iluminura do Livro de Dun Cow
Esses ciclos mencionados são uma organização posterior, definida como forma de melhor categorizar os contos que, nos livros em que foram encontrados, misturavam-se uns aos outros sem nenhuma organização perceptível. Os ciclos dividiram os contos por personagens, acontecimentos, temas ou lugares. Por exemplo, o Ciclo Mitológico trata do povo mítico Tuatha Dé Danann, que teria chegado à Irlanda após uma série de invasões e teria travado batalha com os Fir Bolg e os Formorian, outros povos lendários. O Ciclo de Ulster trata da vida e dos feitos do herói Cúchulainn, guerreiro de Ulster na corte do rei Conchobar em Emain Macha, sendo o conto mais proeminente o Táin Bó Cuailnge, que descreve o que ocorre quando a rainha Medb, de Connacht, declara guerra a Ulster devido ao roubo de uma vaca com atribuições especiais. O Ciclo Feniano descreve a vida e os feitos de Fionn Mac Cumhaill, um guerreiro e poeta que era líder dos Fianna, um exército semi-independente de jovens guerreiros sob o comando do rei Cormac Mac Airt. O Ciclo Histórico, ou Ciclo dos Reis, contém descrições de genealogias e feitos de reis históricos da Irlanda, embora muitos desses contos possuam discrepâncias e informações pouco acuradas, ou até fantasiosas. Um outro grupo, posto à parte, são as Ímmrama, viagens mágicas, em que um herói do nosso mundo navega para o outro, Tír na nÓg ou Tír Tairngire, podendo retornar ou não para casa.
É sabido que esses contos, ao serem copiados por diferentes monges em diferentes épocas, também sofriam alterações, tanto por acidente quanto intencionalmente. Ao se ler diferentes versões sobreviventes de um mesmo conto isso fica muito claro: nomes de personagens mudam de grafia, acontecimentos são modificados, partes são acrescidas. Uma das razões costumava ser as fortes implicações pagãs na tradição oral compilada para esses manuscritos, que acabavam sendo mascaradas ou modificadas devido à fé dos escribas, que criavam verdadeiros híbridos ao dizer que o rei Conchobar do Ulster morreu devido ao desgosto por saber que crucificaram Cristo, ou iniciar o Lebor Gabála com o relato da criação do mundo, de Adão e Eva e do Dilúvio, dignos do Antigo Testamento. Um bom exemplo de como os copistas viam alguns dos contos que transcreviam está no que o monge que copiou o Táin Bó Cuailnge, acrescentou no fim da história: “Bendito seja quem decorar fielmente o Táin como está escrito aqui, sem nada acrescentar a ele. Mas eu que escrevi esta história, ou melhor, esta fábula, não dou crédito a vários incidentes nela relatados. Porque algumas passagens são maquinações do diabo, outras são invenções poéticas. Algumas são prováveis, outras não; e algumas se destinam apenas a divertir os tolos.”
Outro livro importantíssimo para quem deseja estudar a mitologia irlandesa é indubitavelmente o Livro de Leinster (Lebor na Núachongbála, ou Lebor Laignech), um manuscrito compilado em 1160 e mantido quase que em sua totalidade na Trinity College, em Dublin, embora alguns fragmentos se encontrem na University College, também em Dublin. Embora também tenha algumas páginas faltando, o Livro de Leinster sem dúvida encontra-se em melhor estado de conservação do que o de Dun Cow, e é considerado uma inestimável fonte de estudos. Nele há, entre outras coisas, uma das três cópias conhecidas do célebre Livro das Invasões da Irlanda (Lebor Gabála Erren, principal texto do Ciclo Mitológico), uma versão do Roubo do Gado de Cooley (Táin Bó Cuailnge), a versão mais antiga do texto O Exílio dos Filhos de Usnech (Longes mac n-Uislenn, conto do Ciclo de Ulster que narra a triste história de Deirdre) e também uma imensa coleção de Dindsenchas métricas, a Sabedoria dos Lugares, que trata-se de uma classe de textos, em sua maioria em forma de verso, mas alguns em formato de prosa ou ainda simples comentários, que descreve origens de nomes de lugares e descreve acontecimentos relacionados a esses lugares, e também personagens, entre míticos e históricos, que participaram desses acontecimentos. O Livro de Leinster tem provavelmente a maior coleção de Dindsenchas, descrevendo quase duzentos nomes de lugares.
Como o Livro de Leinster é muito extenso, citarei apenas alguns dos contos mais importantes contidos nele, em sua maioria pertencentes ao Ciclo de Ulster. Além do Táin, neste livro estão contos como O Nascimento de Cúchulainn (Compert Con Culainn), O Conto do Porco de Mac Darthó (Scéla Mucce Meic Dathó), O Cerco de Howth (Talland Etair), A Morte de Conchobar (Aided Choncobuir), A Morte de Medb (Aided Meidbe), O Roubo do Gado de Flidais (Tain Bó Flidais) e A Intoxicação dos Homens de Ulster (Mesca Ulad).
Além dos mitos e dos Dindsenchas, no Livro de Leinster é possível encontrar poemas históricos e genealógicos, principalmente a respeito de reis e heróis do Leinster, descrições de invasões e batalhas históricas, tratados poéticos tanto em métrica bárdica quanto grega, além de hinos em latim. Isso demonstra que esses manuscritos eram, em geral verdadeiros compêndios, não só de literatura e mitologia, como também de história, geografia, cultura, religiosidade e tradição.

página Livro de Ballymote, mostrando o alfabeto Ogham
Outro excelente exemplo da natureza mista desses livros é o Livro de Ballymote (Leabor Bhaile an Mhóta), transcrito entre 1390 e 1391, que hoje está na Royal Irish Academy. Este livro também inclui uma das três cópias conhecidas do Lebor Gabála Érren, uma descrição da vida de São Patrício, uma História dos Judeus, o texto As Instruções do Rei Cormac (Tecosca Cormaic, que apresenta diversas diretrizes éticas interessantíssimas), outros contos do Ciclo Feniano, a respeito do rei Cormac Mac Airt e de Fionn Mac Cumhaill, várias genealogias de clãs e reis, regras para a métrica da poesia irlandesa, a única cópia conhecida da Auraicept na n-Éces (Cartilha dos Sábios), uma cópia do Lebor na gCeart (Livro dos Direitos) – que trata dos tributos pagos pelo Rei de Cashel a vários outros reis irlandeses, em uma lista – e uma do Lebor Ogaim (Tratado do Ogham), além de versões em latim da Destruição de Tróia e da História de Felipe e Alexandre da Macedônia.
Este livro é uma ótima fonte para quem deseja estudar o alfabeto Ogham, pois além do Lebor Ogaim, que detalha não só as letras, suas regras, seus usos e seus significados, como também as origens míticas do alfabeto, atribuindo sua criação ao deus Oghma, no Livro de Ballymote também encontra-se a única cópia sobrevivente da Auraicept na n-Éces que, entre outros conhecimentos, apresenta formas de escrever o Ogham, algumas regras práticas, e pensamentos a respeito de sua concepção. Alega-se que o Auraicept na n-Éces é o trabalho de gramáticos irlandeses do século VII, embora muito tenha sido adicionado ao texto original até sua versão do século XIV de Ballymote. Trata-se de um texto complexo e muitas vezes confuso, e uma de suas características mais peculiares é defender o gaélico como sendo superior ao latim, na verdade superior a todas as outras línguas. Há logo na introdução do texto a afirmativa de que no gaélico estão presentes todos os sons mais obscuros de todas as línguas; e ele seria por isso a mais completa delas. Uma das questões mais controversas desse texto, no entanto, está no fato de apontar não um, mas dois possíveis criadores para o alfabeto Ogham que não o deus Oghma apontado pelo Lebor Ogaim: Fenius Farsaid e Amergin mac Míled, dois personagens míticos do folclore irlandês.
Fenius Farsaid, lendário rei dos citas, é uma das figuras apontadas como criador do Ogham e das línguas gaélicas. Segundo a Auraicept na n-Éces, Fenius viajou com sábios das 72 raças das quais todas as línguas foram aprendidas. Mais adiante no texto alega-se que Fenius descobriu quatro alfabetos, o hebreu, o grego, o latino e, mais tarde, o Ogham. Por ter sido descoberto depois, a Auraicept na n-Éces afirma que o Ogham é o alfabeto que supera os anteriores, mais perfeito e mais compreensível. Mas também Amergen, filho de Mil, é considerado o criador do Ogham pela Auraicept na n-Éces. Amergen – também chamado de Amergin mac Míled, ou Amhairghen – é outra figura mítica, o bardo mais famoso dos Milesians, povo que segundo o Lebor Gabála Érren chegou à Irlanda após os Tuatha Dé Danann, vindo da Espanha. Muitos poemas famosos são associados ao bardo Amergen, a começar pelo que, no Lebor Gabála, ele recita para subjugar os Tuatha Dé Danann, quando recém-chegado à Irlanda.
O terceiro destes livros, além do Livro de Leinster e do Livro de Ballymote, a conter uma versão do Lebor Gabála é o Grande Livro de Lecan (Leabhar Mór Leacain), escrito entre 1397 e 1418. Atualmente em posse da Royal Irish Academy, este manuscrito rodou a Europa antes de finalmente ser devolvido à Irlanda, já com folhas faltando e em péssimo estado de conservação (os folios encontram-se cobertos por uma substância gordurosa, tornando-os semitransparentes e mais difíceis de ler). Acredita-se que alguns de seus textos são cópias do Livro de Leinster, embora ele seja bem menor. Ele possui, além dos textos mitológicos, Dindsenchas e as chamadas Banshenchas (termo que quer dizer “sabedoria feminina”), genealogias e textos de natureza legal. Mitos importantes que estão presentes neste livro são A Batalha do Boyne (Cath Bóinde, do Ciclo de Ulster) e A Perseguição de Diarmud e Grainne (Toruigheacht Diarmada agus Grainne, do Ciclo Feniano). O Grande Livro de Lecan, devido ao seu nome, é muitas vezes confundido com um outro livro, o Livro Amarelo de Lecan (Leabhar Buidhe Leacáin), que é um pouco mais antigo.
O Livro Amarelo de Lecan, hoje em posse da Trinity College, em Dublin, foi escrito entre 1391 e 1401 e é muito grande. Ele inclui quase todos os contos do Ciclo de Ulster, incluindo uma versão do Táin Bó Cuailnge que parece ser a união de duas ou mais versões mais antigas, que apesar de incompleta, sobrepõe-se à versão do Livro de Dun Cow, e somando-se as duas foi possível obter a versão mais completa que temos hoje. Ele também inclui uma versão mais recente da Ímmram A Viagem de Máel Dúin, uma grande coleção de tríades irlandesas, e o mesmo Lebor Ogaim encontrado no Livro de Ballymote. Também chama a atenção o conto A Divisão das Terras de Tara (Suidiugud Tellaich Temra), do Ciclo Mitológico.
Outros livros, além dos mencionados, possuem igual importância para o estudo da mitologia irlandesa, como o Livro de Fermoy (Lebor Feirmoithe) e o Livro de Magauran (Lebor Méig Shamhradháin). Há também aqueles manuscritos isolados, não inclusos em livros, mas nos quais estão escritos alguns dos contos mais proeminentes da mitologia irlandesa. Um bom exemplo é o manuscrito entitulado Harleian MS 5280, que se encontra na Brittish Library, em Londres. Este manuscrito contém nada menos que a Segunda Batalha de Moytura (Cath Maige Tuired), um dos contos mais importantes do Ciclo Mitológico, que fala de como Lugh, dos Tuatha Dé Danann, derrotou seu avô Balor, rei dos Formorian, em batalha direta.
É muito comum, nas histórias contidas em todos esses manuscritos, que personagens mitológicas misturem-se a figuras históricas, pessoas que existiram de verdade, e que feitos míticos sejam atribuídos às mesmas. No Ciclo Histórico estão incluídas tanto descrições de reis completamente mitológicos, como Labraid Loingsech, que teria sido rei na Irlanda por volta de 431 a.C., quanto reis que de fato existiram, como Brian Boru. Mas mesmo nos casos em que nomes e genealogias foram comprovados historicamente, nos contos eventos fantásticos ocorrem com essas figuras históricas, tornando os relatos em si inteiramente míticos. Também há o caso do rei Cormac Mac Airt, do Ciclo Feniano, que acredita-se ter existido de fato, bem como há evidências da existência de grupos de guerreiros muito semelhantes aos Fianna descritos nos contos (e que inclusive também utilizavam o nome fian para definir-se), enquanto que Fionn Mac Cumhaill em si, e os eventos narrados em torno de sua pessoa e seu bando, são quase que inteiramente produto da imaginação popular.
Essa mistura, de ancestrais que já viveram, com deuses, heróis, espíritos e seres encantados, denota essa relação indissolúvel no imaginário irlandês entre o que é mito e o que é história. Os deuses irlandeses não são figuras distantes, onipotentes e muito acima da humanidade, sentados em tronos em locais inalcançáveis como o céu ou uma outra dimensão mágica. Eles são sangue do sangue do povo, e caminharam pelo mesmo chão e respiraram o mesmo ar, e ainda é possível falar com eles em locais sagrados como cairns ou rios ou poços de água. O Outro Mundo não é aquele lugar distante que só se chega após a morte, mas uma ilha real que se pode alcançar com um bom barco e uma boa dose de coragem, e até retornar com vida. Os acontecimentos e feitos de heróis e semideuses não aconteceram numa terra distante e desconhecida, mas logo ali naquela colina, na beira daquele rio ou ao longo dessa planície aqui. Tudo está muito perto, muito real, muito íntimo.

a pedra onde Cúchulainn teria se amarrado para continuar lutando no conto do Ciclo de Ulster “A Morte de Cúchulainn” (Aided Conculaind) – Co. Louth.
É particularmente interessante, por isso, ler os mitos e depois ir para a Irlanda em peregrinação, procurando os locais descritos, tocando pedras e molhando as mãos em poços, subindo colinas e entrando em cairns. Os mitos lá estão vivos, isso é perfeitamente perceptível. É fácil imaginar porque monges, apesar de sua fé muitas vezes contrastar com as características inerentemente pagãs dos relatos, foram tão fortemente compelidos a registrar para a posteridade uma riqueza tão grande de lendas, contos e histórias. E nós precisamos agradecer a eles, pois provavelmente sem esse registro elas não teriam sobrevivido.
Por terem sido originalmente escritos em irlandês antigo e normalmente cheios de abreviações (devido ao valor do pergaminho, que não podia ser desperdiçado), esses manuscritos representam um grande desafio à tradução. Apesar disso, existem grupos de estudiosos que dedicam suas vidas a produzir traduções mais acuradas para o inglês, muitas das quais depois são generosamente disponibilizadas na rede, geralmente com várias anotações e observações que ajudam a chegar a uma maior compreensão do texto. O estilo de escrita nos parece estranho, por ser de uma outra época, e muitos dos textos são trabalhosos de ler… mas vale à pena.
Vários brasileiros têm se dedicado a traduzir para o português estes contos, nos ajudando a todos. É um trabalho complexo e de muito valor, pois, para seguir qualquer tipo de caminho voltado para a espiritualidade celta, em particular a irlandesa, essa tradição mitológica faz-se crucial.
Links interessantes para quem deseja ler os contos de mitologia irlandesa (em inglês):  Sacred Text ArchiveCorpus of Electronic Texts da University College Cork, e o maravilhoso compêndio da Mary Jones, no Celtic Literature Collective. Em português há uma compilação de contos no blog do Aengus Miach, Tír Tairnge, e nós também disponibilizaremos, à medida em que possível, nossa contribuição às traduções para português aqui no Tesouros da Irlanda. Quanto a informações sobre os manuscritos em si é possível encontrá-las no site daRoyal Irish Academy e no da biblioteca da Trinity College (é só lançar por exemplo “Yellow Book of Lecan” no campo de busca e aparece bastante coisa).
Boa pesquisa!

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