quinta-feira, 23 de outubro de 2014

As Várias Árvores da Floresta III: Jéferson Matthes Vedoy

A terceira entrevista da nossa série está imperdível, é com o Jéferson Matthes Vedoy, da ordem Walonom (RS). Com muita generosidade e riqueza de detalhes, Jéf nos explica melhor a respeito de como é essa Tradição Druídica que nasceu bem aqui em terras tupiniquins.

Jéf, muito obrigada de coração pela visível dedicação com que respondeu nossas perguntas. Vida longa e próspera à Ordem Walonom! Que a chama de Bríd o abençoe e a todos os seus!

Visitem a página da Ordem Walonom clicando aqui!

Parte I (perguntas genéricas) 

Identidade

1. Como você se intitula, como chama sua prática religiosa?

Me intitulo Waloniano, o caminho que sigo é o da Tradição Druídica Waloniana.

2. Na sua opinião, o que distingue sua prática de outras dentro do Paganismo Celta?

Quando a Tradição foi pensada não havia muito movimento céltico no Brasil, isso em 2001, redes sociais não existiam e até mesmo o acesso à internet era bastante limitado. Toda informação era obtida através de pouquissímos livros e revistas ( nem sempre confiáveis) e através de pessoas que estivessem dispostas a compartilhar aquilo que sabiam, e nossa posição geográfica ( Rio Grande do Sul) não ajudou na interação com outras pessoas, estamos distantes do centro cultural brasileiro. Dentro deste cenário nós buscamos tudo que pudemos para construir as bases do que hoje chamamos Tradição Druídica Waloniana, unindo a busca da informação com um forte sentimento clânico, já que dependíamos basicamente uns dos outros. Por anos ficamos completamente à parte do “cenário céltico brasileiro” trabalhando internamente diferentes questões e construindo instintivamente nosso estilo de religiosidade.

Após o início da interação com caminhos já estabelecidos como o Druidismo e o Reconstrucionismo percebemos que não nos enquadrávamos completamente em nenhum deles e tínhamos criado uma forma alternativa, um reconstrucionista nos achará druidistas demais e um druidista vai nos achar reconstrucionistas demais. Como o Druidismo e o Reconstrucionismo um dia foram pensados, criados e organizados, assim fizemos com nosso caminho.

Não tenho experiência com nenhum outro caminho para seguramente apontar distinções, no entanto posso afirmar que somos permeados de um forte sentimento clânico nos comportando como uma família, entendemos que a espiritualidade deva ser uma prioridade para aqueles que buscam este caminho bem como seu trabalho enquanto membro de uma micro e macro comunidade, temos posicionamento frente a debates sócio culturais, não achamos que o sacerdócio seja o único caminho disponível para viver a religiosidade mas entendemos que qualquer caminho escolhido deva ser cumprido com serenidade, honra e sabedoria e principalmente, achamos que qualquer pessoa possa praticar nossa espiritualidade, pregamos acima de tudo a acessibilidade imediata, sem exigir curriculum ou formação acadêmica.

Temos como principal proposta a popularização da religião de inspiração céltica assim como foi feito com o espiritismo quando chegou aqui no Brasil.


Coletividade

3. Você pratica sozinho ou em grupo?

As duas coisas, tenho minhas práticas de culto doméstico onde tenho minhas irmã como companheiras e o culto mais formal com o Bosque que faço parte, o Feth Fiada. Mas também tenho um bom culto devocional, este pratico sozinho.

4. Pertence a alguma tribo, ordem, coven, clã?
Sim, sou membro da Ordem Walonom e do Bosque Feth Fiada.

5. Como se dá a entrada de novas pessoas no seu grupo?

Na Ordem: existe um processo inicial através de um curso básico ( na versão on line ou presencial) e após o curso a pessoa que desejar participar efetivamente deverá fazer uma entrevista com um tutor, sendo aceito, já constará como membro ativo.

No Bosque: deve ser membro ativo da Ordem Walonom. Deve solicitar participação e após um período de adaptação frequentando nossos encontros e ritos poderá passar pelas iniciações adequadas.

6. Há títulos ou hierarquia de algum tipo em seu grupo?

Sim, a Tradição Druídica Waloniana estabelece uma hierarquia padrão:

Os Doer Nemed : Dedicantes >>>>> Devotos >>>> Laoch ( guerreiros)

Os Nemed : Faith / Draoi/ Fili ( são os sacerdotes) >>>> Cenfinne ( são um casal, onde a mulher representa a soberania e o homem a força da tribo, são o poder temporal e não necessariamente preenchido por sacerdotes).

Anualmente são escolhidos o Gamo e a Donzela ( servem como indicações para ocuparem o cargo de Cenfinne na ausência deles )


Devoção

7. Você é pan-céltico ou exclusivo de alguma nação ( irlandesa, escocesa, ibérica, galesa, etc)?

Embora meu mais antigo alvo de devoção seja Cernunnos meu foco é gaélico.

8. Como você escolheu seu panteão?

O ritual base, a estrutura social e espiritual da tribo são baseados nos registros irlandeses, buscar este panteão foi automático e natural no meu trabalho em grupo, e os Deuses gaélicos falam diretamente ao meu coração, ouço, vejo e interajo com eles de forma orgânica e muito poderosa.


9. Há divindades específicas pelas quais você tenha devoção?

Sim, em ordem de oficialização da devoção: Cernunnos, Brighid e Morrighan. Tenho íntima ligação com mais uma dúzia e amo mais outras, mas oficialmente sou devoto somente destes três.

10. Há algo que você possa acrescentar a respeito dessa devoção?

Acho que quando se torna devoto de uma divindade é necessário além de estudar e conhecer sua mitologia, força e personalidade para elaborar culto, oferendas e orações, é necessário trazer todos estes elementos para a realidade, tirar o culto da virtualidade. Para Cernunnos eu me dedico de forma mais intimista ainda, sempre foi assim, mas dentro da minha devoção à Brighid eu criei o trabalho das vigílias e faço procissões frequentes ao poço que dedicamos à ela e sempre me disponho a ajudar com meus conhecimentos técnicos na área da saúde, já sobre Morrighan criei um projeto chamado Grasnar onde escrevo músicas devocionais, não somente em sua honra mas usando sua força de inspiração principalmente. Para Morrighan ainda guardo um projeto futuro e mais ousado.

Prática

11. Que elementos compoem sua prática? Há ritos? Orações? Oferendas?

Sim, há todos estes elementos associados a uma forte presença comunitária. Além disso tenho meditações, visualizações e outros elementos inspirados como o Toque, nossa versão da incorporação.

12. Roda do Ano Norte, Sul ou Mista?

Dentro da TDW chamamos Grande Espiral a roda do ano solar e Pequeno Espiral a roda do ano lunar, ambas são flexíveis no sentido que praticantes do HS celebram pelo sul e praticantes do HN praticam pelo norte, eu e meu grupo especificamente praticamos a sulista.

13. Datas destinadas a determinadas divindades?

Sim, temos algumas datas específicas para determinadas divindades como por exemplo o culto a Crom Cruaigh celebrada em janeiro.

14. Há uso de altares, objetos mágicos ou simbólicos, ervas, flores, alimentos ou cristais?

Nossa Tradição está em plena construção em diversos elementos isso inclui o uso de cristais e correspondências de ervas e flores, no entanto não erguemos altar, usamos oratórios ( que não são obrigatórios) e nenhum objeto mágico. Como cremos que nosso corpo seja a versão microcósmica da Terra, entendemos que assim como a natureza precisamos somente aprender a usar as partes que nos compõem, nosso corpo é nosso maior e único instrumento.

Em alguns ritos usamos símbolos como os Quatro Tesouros dos Tuatha, mas eles não cumprem o papel de instrumento mágico como é o caso do Athame para os Wiccanos.

Ancestrais e Espíritos

15. Na sua prática há algum culto a Ancestrais, sejam eles culturais, físicos ou locais?

Há sim, aliás é fortíssimo este elemento na prática, sempre, em qualquer rito são chamados e ofertados os Ancestrais, bem como os Espíritos e Deuses.

16. Há introdução de elementos negros ou indígenas?

Não especificamente. A religião Yorubá mantém muitos elementos similares e até idênticos aos nossos como a sacralidade do número nove e sua visão divina, mas optamos por não mesclar elementos de nenhuma religião de forma direta, ou seja, mesmo que possamos nos debruçar sobre uma ou outra prática para estudo e comparação, não trazemos para nossos ritos e cosmovisão qualquer pedaço religioso que não céltico, até mesmo em respeito a essas culturas.

17. Há oferendas? Orações? Símbolos? Datas específicas?


Há oferendas, há orações, há símbolos e lembrança e como associamos os festivais do fogo com as luas, prestamos culto aos Ancestrais sempre na lua nova, ela para nós está ligada às energias do Samhain, principalmente dentro do trimestre após o primeiro de maio.


Parte II (perguntas específicas)

1. Um dos seus trabalhos mais bonitos, na minha opinião que olho de fora, é o da Vigília Brighidiana. Fiquei feliz que você mencionou. Você pode me dizer um pouco mais a respeito de como surgiu essa prática e como ela foi estabelecida e, se possível, os resultados que você tem observado?

Este é o trabalho que mais tem me deixado feliz e satisfeito, é deveras algo muito bonito.

Eu buscava meios de atender minhas necessidades de culto, era agosto, eu estava iniciando minha guarda da chama perpétua de Brighid ( que mantenho desde 2012 juntamento com minha irmã) mas  sentia que faltava algo de efetivo diferencial, tenho formação na área da saúde e sou acostumado com ações que levam ao efetivo impacto na vida dos meus pacientes, diante de alguém com dor não adianta muito pegar em sua mão e dizer “que pena”, é preciso buscar meios de aliviar seu mal, seja através de remédios ou até mesmo de massagem, mas algo de efetivo é preciso ser feito. Muitas pessoas vinham me solicitar ajuda e orientação, no entanto nunca pude oferecer nada palpável, salvo rituais e magias bastante virtuais, as pessoas não me viam agindo e não sentiam grandes efeitos.

Inspirado pelo trabalho da Ord Brighideach International comecei e elaborar o que hoje temos nos trabalhos das Vigílias, abrindo para participação de todos e iniciando guardiões oficiais, como um clero alternativo e independente. O projeto ainda está em sua fase inicial, breve teremos mais elementos compondo ele, como é o caso do Santuário Brigidiano Virtual que criamos após vermos os resultados práticos dos Naoiche e Trioiche.

Quanto aos resultados, bom, testei por quase um ano em minha vida e de conhecidos, sempre faço isso, e percebi que obtive resultados para mim e para os outros, assim abri ao mundo o projeto e temos recebido de diferentes lugares apoio, pedidos e muitos relatos de resultados, curas inesperadas, alívios imediatos, presenças sentidas por aqueles que deram seus nomes para as preces, sei de crianças que encontraram causas para moléstias até então desconhecidas e portanto não tinham tratamento eficaz, idosos que curaram de dores crônicas, enfim, temos tido muitos resultados, e tem nos dado forças para levarmos para outro patamar este projeto em específico. Quando uma mãe me ligou e disse que seu filho sorriu após semanas de internação médica com convulsões misteriosas sem causa aparente e teve alta depois de 3 dias do início do Naoiche, eu soube que era um devoto de verdade e que tinha encontrado um modo de fazer o bem.

2. Me chamou bastante a atenção sua menção sobre o Toque, uma versão de incorporação. Como isso se dá? Pode falar mais um pouco a respeito? Parece muito interessante.

O Toque aconteceu de maneira bastante experimental, aliás a experimentação é um dos nossos fortes.  Percebemos em nossos primeiros ritos que uma parte de nós nos deixava e outra tomava espaço, estávamos ali mas de alguma maneira nossa consciência se modificava, eu entrava Jéferson e no meio do rito virava o Morgan ( demos nomes para nossas “versões rituais”) e meus colegas sentiam o mesmo, mudava a voz, o olhar e principalmente a energia. Tínhamos pouca idade e nenhuma experiência, mas com o passar do tempo fomos pesquisar e estudar os processos de extase religioso nas religiões pelo mundo, observamos que cumpríamos as etapas da construção básica do êxtase, e também vimos que a espiritualidade céltica moderna não fazia uso de tais etapas e querendo ou não havia abandonado os processos mais essenciais para se obter uma conexão nevrálgica com o divino. Resolvemos elaborar uma técnica para o despertar do que chamamos Toque, porque não somos tomados pelo espírito divino como é o caso da Umbanda ou Candomblé, mas sim, somos aproximados ao máximo e tocados pelas energias divinas sem perder a consciência, mas permitindo que ela deixe de lado suas amarras e limitações.

Assim definimos os meios para se obter o Toque e somente ensinamos pessoalmente, dadas as delicadas linhas que precisamos cortar e outras que precisamos criar.

De longe é o mais curioso e polêmico tópico relacionado à Tradição Druídica Waloniana e sua metodologia é nosso legado mais importante e mais bem guardado ( ha pessoas que estão conosco há mais de 7 anos e nunca foram treinadas para isso).

3. A Walonom nasceu no RS e espalhou-se, figurando como a Ordem com maior número de membros que responderam a um censo sobre Druidismo e RC realizado recentemente. Em que outros estados vivem membros da Ordem hoje? Há membros fora do Brasil?

Há membros espalhados em todas as regiões do país, ainda não contemplamos todos os estados, mas isso é um projeto para logo, somente em janeiro deste ano de 2014 é que iniciamos as movimentações para a expansão do nosso trabalho, com cursos on line gratuitos estamos atingindo boa parte do Brasil, nem todos são ou viram membros efetivos, mas tudo ainda em fase beta. Quanto ao exterior, bom, nenhum membro ainda, somente parcerias, mas já estamos pensando nisso.

4. Todos os Bosques seguem uma liturgia pré-proposta da Ordem ou há liberdade criativa dentro dos Bosques?

Há uma estrutura, regras e liturgia pré definidas no entanto aceitamos e debatemos adaptações e mudanças. Algumas práticas são adaptáveis, como por exemplo a Espiral do ano que para praticantes do HS são sulistas e do HN são nortistas ( zonas mediais ficam para debate quando houver grupos nesta linha equatorial).

5. Recentemente vi fotos de um casamento celebrado por você. Vocês realizam cerimônias de outros ritos de passagem, como batizados ou funerais? Sendo a Ordem Walonom algo construído coletivamente desde 2001, como vocês chegaram aos elementos para a elaboração de um ritual de casamento? Foi similar ao processo de elaboração dos demais rituais anuais da Ordem?

Sim, realizamos todos os ritos de passagem, inclusive ano passado divulguei uma imagem do ritual de Menarca da minha irmã, realizado por toda a tribo no exato dia de seu primeiro sangramento, comemorado com um jantar após a celebração que realizamos às margens do lago Guaiba em mata fechada. O primeiro rito de passagem que realizamos foi o de morte, perdemos uma membro menina em nosso segundo ano de funcionamento, em silêncio, unidos pela dor e pela fé ajudamos ela em sua entrada na barca que a levaria para além da nona onda. O céu respondeu com chuva.

Quanto ao casamento, eu e Viviane ( Faith do Bosque Feth Fiada) nos reunimos por um ano inteiro, pesquisando, buscando referencias elementos para erigir um casamento ritual cuja cerimônia fosse eficaz. Eu e ela juntos criamos a liturgia ritual .

6. Há mais alguma coisa que você gostaria de divulgar a respeito da sua prática, ou da prática da sua Ordem?

Sim. Walonom foi criada e se mantém independente das ordens internacionais porque antes de mais  queremos estabelecer um modelo de prática que seja inspirado pelo espírito Celta mas praticado pela alma brasileira.  Temos desafios, cometemos erros, temos um objetivo e vamos alcançá-lo, facilitar o acesso à informação prática, promover nossa espiritualidade, popularizar o contato com os Deuses e nunca elitizar aquilo que todos os antigos Celtas tinham no quintal de casa. Para,  nós o a tribo é que importa.

Que os Deuses abençoem a todos e que o Corrente seja próspero.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

DUAS ESTAÇÕES, TRÊS MUNDOS, QUATRO TESOUROS E CINCO DIREÇÕES: OS PILARES DA COSMOLOGIA CELTA E DRUIDISMO RECONSTRUCIONISTA CELTA

Tradução feita com autorização da autora, em outubro de 2014, que também concedeu autorização para publicação no Corrente RJ- Paganismo Celta Unificado. Todos os direitos reservados.

Como a maioria de vocês deve saber, o rio mais sagrado do hinduísmo é o Ganges, mas antes do Ganges se tornar o foco dos rituais e crenças religiosas, havia outro rio que era igualmente sagrado. Esse rio era o Saraswati e uma civilização inteira conhecida como cultura HARAPPAN floresceu a seu redor de 2500 a.e.c. até 1500 a.e.c. no Vale do Rio Indu do que é hoje Índia e Cashemira. Suas maiores cidades foram Harappa e Mohenjo-Daro.

A cultura HARAPPAN era altamente avançada na escrita, matemática, metalurgia, odontologia, instrumentos de corda, esculturas tridimensionais, planejamento urbano, irrigação e drenagem, banhos públicos, barcos e canais, e a população era maior que as dos dois reinos do Egito juntos. Era uma cultura que comercializava constantemente e vivia em paz. Sua língua era um tipo de Dravidiano [1]

A cultura enfrentou uma catástrofe ambiental quando o clima mudou, as chuvas não vieram e seu rio-mãe-sagrado, o Saraswati secou. Cerca de 2000 a.e.c., o rio sagrado que corria no coração dessa civilização se foi e a cultura HARAPPAN começou a se dispersar. O que sobrou da cultura HARAPPAN foi absorvida ou conquistada pelos proto-indo-europeus ou faladores de sânscrito.
As evidências sugerem que alguns harappianos migraram do noroeste da Índia rumo ao sul para o interior do subcontinente enquanto outros harappianos migraram para China e Tibet. Há também evidências de que alguns deles podem ter ido pra oeste, pra Europa ocidental. Que evidências temos dessa teoria? Como evidência física, nós temos o Caldeirão de Gudenstrup que foi encontrado num pântano dinamarquês em 1891. A procedência do caldeirão continua em debate, mas sabe-se que foi construído entre o primeiro e segundo século a.e.c. Ainda que encontrado numa pântano dinamarquês, o caldeirão retrata uma figura cornífera rodeada por criaturas exóticas como elefantes e leões e está sentada na posição  yogue. A figura cornífera é celta, nós sabemos devido ao torque em suas mãos. Ainda que o cornífero lembre muito as figuras HARAPPAN de Shiva Pashupati, o Senhor dos Animais.

Nas imagens hindus de Shiva, ele geralmente se encontra em pose de meditação com uma serpente em seu pescoço, para ilustrar sua absoluta falta de medo. Do mesmo modo que  deidade cornuda absoluta falta de medo. Do mesmo modo que a deidade cornuda de Gundestrup é apresentada segurando uma serpente. Mais paralelos podem ser encontrados entre os europeus, védicos e povos do vale Indus e suas culturas e eu vou falar primeiramente sobre os celtas por ser a cultura mais relevante a minha própria fé, que é o druidismo.

O rio-mãe sagrada ao longo do qual a cultura celta se desenvolveu foi o Danúbio, que foi nomeado pela deusa Danu. A mesma deusa deu seu nome ao rio Don, o Dneiper e outros. Danu é também uma deusa hindu primitiva das águas primordias. No Rig Veda, ela é chamada de mãe dos Danavas, ou crianças de Danu.

Os povos célticos desenvolveram um sistema de castas de “Nemed” ou “Sagrado” que era uma classe de druidas que são equivalentes aos Brahmanis, guerreiros que são equivalentes aos Kshatriyas, fazendeiros e produtores e escravos que realizavam as mesmas tarefas dos “intocáveis”, casta indiana. Assim como na cultura hindu e védica até o século X, um deles podia se mover pra cima ou pra baixo na ordem social, avançando em status conforme recebe educação ou ganha habilidades, o sistema de castas dos celtas ancestrais era fluido e permitia oportunidades de progresso e também a perda do status dependendo da educação e outras circunstâncias.

Os celtas e povos védico-hindus compartilham outras similaridades tais como a supremacia das deidades são sempre personificadas em três: a tripla Brighid por exemplo, que era a mais popular deusa pan-céltica. Ela era personificada como uma tríplice Brighid, a patronesse dos ferreiros e da forja, a patronesse da cura e patronesse dos poetas. Semelhante a Lugh Samildanach, o Deus de Toda Arte, que nasceu como um tripleto. A Tripla deusa da Guerra conhecida como A Morrighan, era frequentemente personificada como três corvos, três gralhas ou três Grandes Rainhas chamadas Morrígan, Badb e Nemain. A Deusa da Terra da Irlanda Ancestral era uma deidade tripla Banba, Fodla e Ériu. Na Gália celta a Matronae eram Mães Triplas que traziam as bênçãos das plantas, comida e das crianças saudáveis para as tribos. Assim o número três implica Grandes Deuses, divindade e compleição.

Essas divindades triplas podem ser comparadas ao Trimurti Hindu: Brahma, Shiva e Vishnu e à Trivedi: Shakti, Lakshmi e Saraswati.

A religião druídica e ensinamentos filosóficos são semelhantes às crenças védicas e hindus também. Os druidas ensinavam a doutrina da reencarnação de acordo com o testemunho de historiadores contemporâneos. Pomponius Mela registrou que os druidas ensinavam sobre a reencarnação para fortalecer a coragem dos guerreiros. Ele escreveu que “um dos seus dogmas era ficar o mais famoso possível e ficarem de prontidão para irem à guerra, assim o nome dessas almas seria eterno e assim seria eterno entre as almas na outra vida”.

Ammianus Marcellinus escreveu “os druidas...declararam que as almas são imortais” enquanto Diodorus Siculus disse: “a doutrina pitagórica prevalece entre eles, ensinando que a alma dos homens é imortal e vive novamente por um número fixo de anos habitando outro corpo”.No séc.I, Lucan endereçou aos druidas retoricamente essas palavras: “vocês nos dizem que o mesmo espírito tem um corpo de novo, em algum lugar e que a morte, se o que cantam é verdade, seria o ponto médio de uma longa vida”.

Podemos encontrar ainda mais paralelos entre as sagradas escrituras das religiões  célticas e hindus. No Poema de Amairgen do séc.XI, Lebor Gabala Érenn (Livro das Invasões da Irlanda), um livro composto de uma mistura de pseudo-história e conhecimento popular passado de geração em geração, o poeta declara:

“Eu sou o vento que sopra pelo Mar
Eu sou a Onda do Oceano
Eu sou o Murmúrio dos...........
Eu sou o Touro de Sete Combates
Eu sou......................da Rocha
Eu sou o Raio de Sol
Eu sou a mais  Exata das Flores
Eu sou o Javali Selvagem em Valor
Eu sou o Salmão da Poça
Eu sou o Lago na Planície
Eu sou a Habilidade Do Artesão
Eu sou a Palavra da Ciência
Eu sou a ponta da Lança que dá batalha
Eu sou o Deus que criou a cabeça do Homem
O Fogo dos Pensamentos”

Isso pode se comparar ao Bhagadav-Gita onde Sri Khisna diz:

“Eu sou o estabelecido no coração de todos os seres
“Eu sou o começo, o meio e o fim de todos os seres também (2)”
“Entre corpos luminosos eu sou o sol...entre mansões celestiais eu sou a lua...e Meru entre as mais altas montanhas...das cheias eu sou o oceano...das coisas imóveis eu sou Himalaya...eu sou o leão entre as bestas...o Ganges entre os rios...eu sou o infinito em si, o Preservador cuja face se volta para todos os lados....eu sou o Arjuna, a semente de todas as coisas existentes, e não há coisa, animada ou inanimada, em que eu não esteja(3)

Além disso, é fato que a religião celta faz oferendas a fogos sagrados, águas sagradas e árvores, enquanto os rituais védicos envolvem oferendas a fogos sagrados (Agni) e águas sagradas (Soma) e o uso do poste em seus rituais. A foice foi usada tanto por druidas como por sacerdotes brâmanes. A evidencia deixa claro que há um segmento védico ou proto-védico que corre em direção às crenças religiosas indo-européias.

Assim, tendo explorado a mais profunda raiz do que percebo ser nossa mais próxima origem tecida, gostaria de olhar os princípios básicos da cosmologia céltica tal quais são compreendidos pelos druidas reconstrucionistas célticos modernos hoje em dia.

DUAS ESTAÇÕES

O primeiro princípio é a divisão do ano sagrado. Para os celtas ancestrais haviam apenas duas estações – inverno e verão – ou metade clara e metade escura. A metade escura começava no Samhain ou como é conhecido nos tempos modernos “Halloween” ou “Dia de todas as almas” enquanto a metade clara começava no Beltane ou como é conhecido nos tempos modernos “Dia de Maio”.

Esses dois festivais eram os dias mais sagrados no ano celta, agindo como portais entre a luz e a escuridão; entre um estado de existência e outro. Eram tempos de caos e mudanças, quando os espíritos moviam-se livremente entre um mundo e outro e a comunicação entre os mortos (ancestrais) era mais fácil.

Ambos os festivais são centrados nas atividades das vacas. Em Beltane, as vacas eram levadas para seu pasto de verão nas montanhas, enquanto no Samhain as vacas eram trazidas de volta.

No Beltane, as vacas que iam sair do recolhimento eram ritualisticamente abençoadas passando entre dois fogos sagrados conforme deixavam a fazenda. Os fogos deviam estar próximos o suficiente para que uma vaca branca que passasse entre eles tivesse seu pelo tingido de marrom. Vacas eram tidas como animais lunares aquáticos que produziam o mais importante dos líquidos chamado leite, que depois virava a manteiga e o leite das tribos. Ao passar as vacas pelo fogo, água e fogo se reuniam, o que é uma forma poderosa de magia porque os celtas antigos criam que o mundo fora feito de fogo e água, e onde quer que esses dois elementos estejam juntos, há a passibilidade de transformação, criação e mudanças poderosas.

Entre Beltane e o Samhain existem dois outros festivais, Imbolc, que acontece no início de fevereiro em honra a grande deusa tríplice Brighid. É também um festival de leite, que celebra a lactação das ovelhas. Lughnasadh era a celebração dos primeiros frutos do colheita, era celebrado do fim de julho ao meio e agosto dependendo de quando os novos grãos estavam maduros. Nesse festival, cavalos, que eram entendidos como criaturas solares de fogo, eram ritualisticamente limpos em águas de lago ou córrego e mais uma vez fogo e água eram unidos para “energizar” o mundo. Corridas de cavalos e outros jogos de habilidade e competições assim como uma grande feira e concursos de poesia marcavam a ocasião. O festival honrava o deus Lugh que era “senhor de todas as artes” e sua mãe adotiva Tailtiu, que pode ser  compreendida como a própria Mãe Terra em si.

TRÊS MUNDOS

Para os celtas havia três mundos que existiam simultaneamente e que eram entrelaçados uns aos outros. O mundo do mar ou água era o submundo dos ancestrais e Sidhe ou Fadas. Esse mundo era sob a terra, mas podia ser acessado pela água, uma vez que oferendas eram jogadas na água tal como lagos, poços, córregos como presentes ao Reino das Fadas e mortos honoráveis.

O mundo da terra era o reino sagrado das plantas, árvores, animais, pedras e humanos. Alguns dos habitantes desse mundo, como as pedras e as árvores são especialmente venerados, porque uma pedra pode estar meio no subterrâneo e meio na superfície e assim residir em dois mundos, enquanto suas árvores tem a raiz no submundo da água, seu tronco no reino da terra e seus galhos que tocam o Reino do Céu. Oferendas são feitas às árvores sagradas e pedras para honrar sua existência entre os reinos. Árvores de raízes tão profundas como freixo e carvalho e pedras que se projetam da terra, são entendidos como objetos limiares de poder que podem ajudar uma pessoa a viajar entre mundos. Rituais são feitos na presença de árvores e pedras por essa razão.

O mundo do Céu era dominado pelos Deuses do Céu e Deusas, de deuses trovão como Taranis e corvos e gralhas emissários da Tripla Deusa da Batalha, a Morrighan. Deidades solares como Belenus e Aine eram honrados com oferendas ao fogo. Lugh e Brid que eram o Mestre e a Mestra das artes e associados ao fogo eram honrados com forja e altar de fogo. Oferendas eram feitas com fogos sagrados para acessar o Reino dos Céus, pois o fogo carregava as oferendas para cima via fumaça.

Para os celtas, o símbolo que melhor representa esses três reinos de existência era a árvore, devido a habilidades da árvore de expandir os mundos. Toda tribo tinha uma Bile ou árvore sagrada sob a qual juramentos eram selados. Tal árvore era simultaneamente uma igreja, uma casa real e um salão de reuniões dos ancestrais, líderes tribais e druidas. A saúde e a sorte da comunidade estavam ligadas à árvore e a pior coisa que podai acontecer à comunidade era ter sua árvore cortada.

Os Três Reinos eram também entendidos como existentes na forma humana. Era dito que três caldeirões, o “Caldeirão da Sabedoria” na cabeça, o “Caldeirão da Motivação” no peito e o “Caldeirão da Incubação” no abdômen.

O Caldeirão da Sabedoria na cabeça dizia=se nascer de cabeça pra baixo em todas as pessoas e que gradualmente virava pra cima através do treinamento e intervenção divina. O Caldeirão da Motivação no peito nasce de lado na maioria das pessoas, ele é a origem da emoção e da arte poética e se torna plenamente de pé conforme adquirimos habilidades artísticas. O Caldeirão da Incubação no ventre é o local do calor, sustento e saúde. Numa pessoa saudável ele fica de cabeça pra cima, e tomba de lado em caso de doença. Ocaldeirão se vira plenamente pra baixo na morte. Os Três caldeirões são comparáveis aos 3 chacras maiores do corpo humano.

No poema ancestral “O Caldeirão de Poesia” outra composição atribuída a Amergin do Joelho Branco, os 3 caldeirões são descritos dessa maneira:

“Meu perfeito caldeirão do calor foi levado pelos Deuses do misterioso caos primitivo dos elementos, a perfeita verdade que enobrece do centro do ser, que derrama a aterrorizante corredeira do discurso...os Deuses não dão a mesma sabedoria a todos, tombado, invertido, pra cima, sem conhecimento, meio conhecimento, pleno de conhecimento...o que é a razia da poesia e cada outra sabedoria? Não é difícil, 3 caldeirões nasceram em cada pessoa – o caldeirão do calor, da motivação e da sabedoria.

O caldeirão do calor nasce pra cima na pessoa desde o começo. Ele distribui sabedoria pra pessoa na juventude.

O caldeirão do movimento, contudo aumenta depois de mexido. Que é o mesmo que dizer que nasce inclinado para o lado, crescendo internamente.

O caldeirão da sabedoria nasce emborcado e distribui sabedoria em poesia e em toda parte.

O caldeirão do movimento, ele está emborcado em todas as pessoas desprovidas de arte, ele é inclinado pro lado nas pessoas com artes de bardos e pequeno talento poético e está de cabeça pra cima nos grandes poetas que são grandes fontes de sabedoria. Nenhum poeta está garantido pois o caldeirão pode se virar por tristeza ou por prazer. Há 2 categorias de prazer que mexem o caldeirão: o prazer divino e o prazer humano...[4]

QUATRO TESOUROS

Por tradição os Tuatha Dé Danann ou Crianças de Danu voaram do norte trazendo quatro tesouros com eles: a espada de Nuada, o Caldeirão de Dagda, a Lança de Lugh e a Lia Fail ou Pedra do Destino.

Sobre a espada de Nuada diz-se que ninguém escapava dela uma vez desembainhada. Porém a espada não era só um artefato de guerra em tempos ancestrais, a espada tinha usos práticos como cortar carne, podar arbustos, escavar, ceifar, cortar e afiar objetos. Era símbolo de sabedoria, habilidade, criatividade, honra, verdade e discernimento. Nas lendas uma espada nobre cobria a verdade e matava a falsidade.

O Caldeirão de Dagda era dito como sendo um inexaurível container mágico de comida do qual ninguém saia descontente, e os druidas podiam trazer guerreiros mortos de volta à vida mergulhando-os dentro do mágico caldeirão da cura. Taças e chifres de beber são símbolos relacionados que portavam líquidos mágicos e nutritivos aos Deuses e que eram containers da sabedoria mágica do Outro Mundo e dos mistérios da Natureza. As lendas das buscas pelo Santo Graal são reflexos desses objetos místicos.

A lança de Lugh era dita como capaz de fazer seu portador invencível, ela pertence ao brilhante deus que é Senhor de toda Arte. Lugh era ao mesmo tempo grande guerreiro, mago, ourives, harpista, curandeiro e muitas outras coisas. Sua lança brilhante simboliza a maestria de talentos, o crescimento da sabedoria, foco intenso numa habilidade ou arte, profunda inteligência, o fogo da inspiração sobrenatural, os fogos da cabeça e do pensamento.

A pedra de Fal ou Lia Fail era a pedra da coroação mágica que rugia quando um verdadeiro rei colocava seus pés sobre ela. A “Lia” é uma pedra trabalhada ou inscrita, não uma pedra bruta natural. Com sua base no chão e seu topo no ar, ela é a ligação de dois mundos tal qual um rei deve ser o elo entre esse mundo e os reinos divinos. A cor da pedra é cinza, símbolo da sabedoria e conhecimento e Fail é um anel sistema fechado ou protetivo que cercava e guardava o reino. Assim essa pedra que dizia-se estar em Tara e que mais tarde fora levada para a Escócia (e então roubada pela coroa britânica) é uma pedra ancestral que foi inscrita de modo misterioso e sagrado que guardava o reino. Quando o verdadeiro governante, que for verdadeiramente sábio e protetor da terra se aproximar ela falará com clareza. Até lá a pedra permanece em silêncio, guardando seus segredos e poderes para o legítimo rei porvir.

CINCO DIREÇÕES

Existem ao menos doze direções que são reconhecidas como sendo significantes para os celtas, sabemos disso porque existem 12 ventos ou airts que são reconhecidos por seu efeito único sobre a terra e as pessoas [5]. Mas para finalidades religiosas existem 5 direções maiores que são encontradas nos mitos e histórias [6].

O Norte é a direção das batalhas e do fogo, seu emblema é a espada e sua criatura é a águia.É a direção dos guerreiros, dos Deuses .Ventos nórdicos pressagiam conflito e discórdia.

O Leste é a direção da abundância e prosperidade. Seu emblema são as colheitas de todo tipo, terra boa, roupas finas, abelhas e mel, sua criatura é o salmão.

O Sul é a direção da Deusa, associado à água e as artes criativas como música e poesia. Sua criatura é a leitão, animal que vai fundo na terra escura para buscar inspiração e sustentação, trazendo tesouros ocultos pra luz.

O Oeste era o lugar da manutenção da história, da contação de histórias, da iluminação, do fogo interior, do aprendizado e da passagem pelos mistérios. É a aerada direção do intelecto. Sua criatura é o veado.

O Centro era a quinta direção sagrada que completava um espaço ritual. Seu emblema era a pedra, sua criatura  era a Égua da Soberania que simbolizava a Deusa da Terra. Era o lugar da maestria e da governança. Cinco era o número que implicava em papel sagrado.

Essas cinco direções se espelhavam na cosmologia hindu de Monte Meru onde quatro continentes (dizem) estão arrumados ao redor de uma montanha mítica central cujas raízes penetram a mesma distância no oceano que seu pico alcança o céu.

Enquanto druidas modernos estão ativamente procurando as ancestrais raízes proto-védicas que a religião hindu e a religião céltica têm em comum, nós estamos nos voltando à vívidas e intactas religiões da terra tal qual as tradições nativo-americanas e xamanismo siberiano em busca de pistas de como reviver as tradições tribais ancestrais centradas na terra europeia. Pode haver muitos paralelos a serem encontrados nos altares de fogo nativo-americanos, orações à água, reverência à animais sagrados, plantas e árvores, e o reconhecimento que mulheres tal qual homens, podem ser líderes tribais, curandeiras e clérigas [7].É um bom momento para ser um participante dos esforços reconstrucionistas de reconexão com nossos costumes ancestrais tribais e honra à Terra e suas criaturas.

Ellen Evert Hopman


Arquidruidesa da Tribe of The Oak (Ordem do Carvalho) http://tribeoftheoak.com
(A ordem possui cursos online e membros na Europa e outros lugares)

Conheça os outros trabalhos da autora em:  www.elleneverthopman.com onde você encontra links para seus livros de ervas, vídeos, artigos e blog druídico


Tradução Luciana Cavalcanti 2014

NOTAS:

1 http://en.wikipedia.org/wiki/Indus_Valley_Civilization. Contexto histórico e afiliação linguística acessado em setembro de 2009.

2 Zaehner, R. C. The Bragavad-Gita, Oxford University Press, NY, 1973. Pg 297

3 Judge William Q., The Bragavad-Gita, The Theosophy Company, Los Aneles, 1971 pgs 73-76
4 De trechos traduzidos de Erynn Rowan Laurie.Veja o texto complete em www.madstone.com/pages/cauldronpoesy.htm

5 Veja a lista de ventos no texto cristão arcaico “Saltair na Rann”, canto 1, quadras 12 a 24.

6 Para uma discussão minuciosa a respeito veja Alwyn e Brinley Rees “Celtic Heritage”. Thames and Hudson, NY, 1994.


7 Para evidências de mulheres druidas em tempos antigos por favor veja “Druidas Femininos” por Ellen Evert Hopman em http://themagicalbuffet.com/blog1/2008/02/29/female-druids/

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Ser um fáidh

Nas últimas viagens à Irlanda conheci lugares, pessoas e vivi experiências que fortaleceram a minha fé de maneira exponencial. E esse fortalecimento culminou no encontro com o meu "destino" dentro do meu clã e no meu caminho religioso: ser um fáidh.
Vindo de uma família em que esse dom é comum, não poderia me supreender com o fato de ser mais um, porém foi justamente o contrário. Ser um fáidh, grosso modo, é ser um vidente, prever o futuro. Porém o "cargo" de fáidh vai além de ver o que se esconde ali na esquina, vai além de um sonho premonitório. É estar atento a todos os sinais que se recebe do Mundo e saber interpretá-los da maneira correta.
Ser um fáidh é criar um elo de confidencialidade com aquele que está diante de você. Um elo que, quiçá, vá além da esfera da honra e palavra. É um quase elo espiritual em que, por alguns momentos, você se torna o outro e o entende profundamente. E ser o outro não é algo fácil de nenhum modo.
Vir de uma família com essa habilidade é uma faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo em que você tem facilidade em acessar o oculto, você se sente confortável em somente usar seu dom quando 
alguém o necessita. Porém, ser fáidh é estar a serviço do clann, do tuath. É cuidar, constantemente, da família que te cerca. Não pode ser um part-time job, tem que ser algo a que você se dedique plenamente, inclusive tendo que fazer sacrifícios muitas vezes.
Me parece que o trabalho do fáidh é mais soturno, obscuro e introspectivo que o do fili, por exemplo. Talvez seja coisa minha, mas de qualquer forma sempre preferi ficar mais aos fundos sem me mostrar. E viver no escuro sempre foi uma característica daqueles que buscavam o conhecimento do oculto, do divino, das respostas às perguntas.
Ser fáidh é difícil, mas é um difícil maravilhoso. 

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

As Várias Árvores da Floresta II: José Paulo Gaesum

Nosso segundo entrevistado, José Paulo Gaesum, de Curitiba (PR), das Clareiras Coré-Tyba e Caer Ynis, está entre os organizadores do próximo EBDRC, que será de 4 a 7 de Junho de 2015 em Curitiba. Ele também é integrante do Conselho Brasileiro de Druidismo e Reconstrucionismo Celta e nos brindou compartilhando um pouco de sua experiência e vivência dentro da espiritualidade céltica.

Obrigada pela generosidade, JP! É uma honra tê-lo na nossa Floresta!

Povo, não deixem de visitar os sites do CBDRC e do EBDRC.

Espero que gostem da entrevista tanto quanto eu! :D


Parte I (perguntas genéricas) 

1. Identidade. Como você se intitula, como chama sua prática religiosa? Na sua opinião, o que distingue sua prática de outras dentro do Paganismo Celta?

Eu pratico o que chamamos de Tradição Druídica ou druidaria, conforme os moldes da Druid Order/Ordre des Druides. Alguns chamam isso de mesodruidismo, mas este termo não faz sentido para minha prática, então não o adoto exceto para fins comparativos.

Esta é a vertente que surgiu com o renascimento druídico em 1717 quando John Toland reuniu membros de bosques e clareiras da Inglaterra, Gales, Escócia, Irlanda, Man, Cornuália e Bretanha Francesa e que se mantém viva até hoje, quase 300 anos depois.


2. Coletividade. Você pratica sozinho ou em grupo? Pertence a alguma tribo, ordem, coven, clã? Como se dá a entrada de novas pessoas no seu grupo? Há títulos ou hierarquia de algum tipo em seu grupo?

Praticar a Tradição Druídica sozinho é muito válido, mas praticar em grupo é uma experiência muito engrandecedora. Sou membro das Clareiras Coré-Tyba e Caer Ynis e ambas são parte da Assembleia da União Druídica do Brasil (UDB), o braço brasileiro da Ordre des Druides. Por ser uma ordem muito tradicional, temos posições bem definidas em relação aos cargos e aos graus, que vão desde credimacos (aquele que vive a fé druídica) até uerdrui (o grande druida).

Porém além disso, considero que minha família druídica extrapola os limites da minha Ordem e abraça diversos irmãos e irmãs que tenho espalhados pelo Brasil em grupos das mais diversas vertentes e com quem tenho a oportunidade de aprender muito.


3. Devoção. Você é pan-céltico ou exclusivo de alguma nação (irlandesa, escocesa, ibérica, galesa, etc)? Como você escolheu seu panteão? Há divindades específicas pelas quais você tenha devoção? Há algo que você possa acrescentar a respeito dessa devoção?

Considero-me um pancéltico de orientação continental gaulesa. Devotar-me diretamente aos deuses da Gália nunca me impediu te manter contato também com deuses insulares quando necessário. Não creio que os deuses preocupem-se muito com as barreiras geográficas e culturais e que esses limites são muito mais uma imposição dos próprios humanos.


4. Prática. Que elementos compõem sua prática? Há ritos? Orações? Oferendas? Roda do Ano Norte, Sul ou Mista? Datas destinadas a determinadas divindades? Há uso de altares, objetos mágicos ou simbólicos, ervas, flores, alimentos ou cristais? 

Divido minhas práticas em dois momentos: druidaria e politeísmo céltico.

Na druidaria (o ofício do druida) sigo os preceitos que me foram ensinados pelos meus instrutores, seus ritos e orações específicas, assim como o uso de altares e objetos sagrados. Tudo isso faz, ao meu ver, parte da Tradição Druídica e tem como objetivo meu crescimento e o auxílio no crescimento da comunidade que me permeia.

Porém por fora disso tenho também práticas devocionais que são muito particulares, como oferendas e orações e que tem muito a ver com meu lado religioso. Para essas práticas, que chamo de politeísmo céltico, busco inspiração na história e na arqueologia, da mesma forma que os reconstrucionistas o fazem.


5. Ancestrais e Espíritos da Terra. Na sua prática há algum culto a Ancestrais, sejam eles culturais, físicos ou locais? Há introdução de elementos negros ou indígenas? Há oferendas? Orações? Símbolos? Datas específicas?

O respeito à ancestralidade é um dos pilares básicos da maioria das espiritualidades célticas e talvez seja um dos poucos pontos unânimes.

Em nossa Tradição mantemos o respeito aos nossos antepassados em todos os ritos, mas especialmente em Samonios e Beloptenia, quando acreditamos que este contato é mais forte.

Além disso honramos muito nossa ancestralidade druídica, mantendo sempre viva nossa linhagem iniciatória e procurando respeitar o nome daqueles que seguiram por este caminho antes de nós.
Em nossas clareiras não utilizamos elementos indígenas ou negros, porque acho que isso não faz muito sentido para nossas práticas. Honramos sim nossos antepassados, mas não acreditamos que seja necessário trazer elementos de culturas não-célticas para dentro dos ritos, porque em nossas oração aos ancestrais nos referimos aos seus espíritos e não à sua carne, suas nacionalidades ou etnias.



Parte II (perguntas específicas)

1. A Clareira Coré-Tyba será anfitriã do VI EBDRC, um Encontro anual que tem feito um maravilhoso trabalho de união entre os celtas de todo o Brasil (e que ano que vem se os Deuses permitirem, IREI! rs). Como foi o processo de criação desse evento, que você está à frente desde o nascimento, e como é para você organizá-lo novamente? O que mudou de lá pra cá, e o que podemos esperar para o futuro?

O Encontro Brasileiro de Druidismo e Reconstrucionismo Celta é a realização de um sonho que foi sonhado por muitas pessoas. O ano era 2009 e as clareiras druídicas eram muito fechadas e mesmo grupos localizados na mesma cidade, muitas vezes não se conheciam. Toda a comunicação era através das listas de e-mail e a gente sentia necessidade de um contato mais próximo. E foi assim que em 2010 a primeira edição aconteceu em Florianópolis com a organização do Caer Ynis.

De lá para cá muita coisa mudou: ano após ano os anfitriões se esforçam cada vez mais e o evento tem tomado uma proporção muito bacana, desentocando cada vez mais druidistas e aproximando as pessoas. As únicas coisas que não mudaram foram a amizade e o respeito, pois como costumamos dizer: devemos sempre perceber quão grandes são as semelhanças que nos aproximam e quão pequenas são as diferenças que nos separam.

O que conseguimos com o EBDRC é algo praticamente único no druidismo mundial: reunir em um evento membros das mais diversas vertentes do druidismo e da Espiritualidade celta e proporcionar a troca entre eles. Existem na Europa e nos EUA alguns grandes eventos que reúnem várias pessoas, mas geralmente eles são todos membros da mesma Ordem Druídica. Aqui a gente vai além e enxerga a fé celta como uma grande família.

Esse nosso esforço é inclusive reconhecido lá fora. Phillip Carr-Gomm, Chefe Eleito da OBOD, é um dos que já elogiaram nossa iniciativa e assim como ele, outros druidas franceses e mesmo portugueses já tem as nosso Encontro em vista.

Para 2015 estamos preparando várias novidades, mas ainda são surpresa.


2. Em 2010 você foi um dos idealizadores do que hoje é conhecido como Conselho Brasileiro de Druidismo e Reconstrucionismo Celta (CBDRC). Muitas pessoas ainda desconhecem o Conselho, suas atribuições atuais e planejadas, e seus projetos. Se puder, gostaria que falasse um pouco sobre o Conselho, como forma de divulgá-lo e esclarecer suas atribuições e funções principais. (:

O Conselho Brasileiro de Druidismo e Reconstrucionismo Celta (CBDRC) é outro sonho destes coletivos.

A ideia é termos uma entidade que represente o druidismo brasileiro e todas suas vertentes. É ser uma organização que possa brigar pela nossa comunidade, que possa nos defender e que possa nos unir ainda mais. O Conselho servirá também para fomentar novos eventos, a espelho do EBDRC, por todo o país, abrindo as portas para aqueles que procuram a fé dos antigos.

Inclusive no mês de setembro de 2014 abrimos o processo para que os grupos possam se filiar e ter assim voz ativa no Conselho, votando nos projetos e mesmo apresentando novas ideias. No site www.cbdrc.wordpress.com tem todas as informações sobre como se filiar.


3. Quais são, na sua opinião, as principais diferenças do chamado Mesodruidismo para outras formas de espiritualidade céltica?

O termo mesodruidismo deriva de um artigo de Isaac Bonewits, fundador da ADF, que falava do mesopaganismo como sendo os movimentos pagãos que renasceram a partir do século XVIII, os diferenciando assim dos paleopaganismos (os paganismos antigos originais) e os neopaganismos (os movimentos mais modernos).

Pessoalmente não compartilho deste termo porque acredito que o que praticamos é druídico, não mesodruídico e muito menos neodruídico. A Tradição Druídica de hoje é a mesma dos nossos antepassados, apenas evoluindo com o passar dos anos. As liturgias mudaram porque os tempos mudaram, mas apesar das diferenças na Forma, mantemos a mesma Essência.
Hoje tentar colocar no mesmo saco todas as ordens druídicas surgidas nos séculos XVIII e XIX é ser extremamente simplista, porque elas tem origens diversas, culturas diferentes e costumes variados. Há aquelas de cunho espiritual, outras tem um foco cultural e outras são mutualistas. É por isso que repudio esse tipo de distinção e procuro enxergar todos os grupos druídicos como árvores distintas de um mesmo bosque, da mesma forma como vocês estão fazendo com essas entrevistas.


4. Você menciona o culto aos Ancestrais como um dos poucos pontos unânimes entre as diversas espiritualidades célticas. Você pode falar um pouco mais sobre isso?

Se eu tivesse que resumir a fé celta em uma palavra, eu diria "ancestralidade".

Esse termo engloba além dos nossos antepassados, nossos deuses antigos e mesmo a natureza sagrada. E quando falo em antepassados não me refiro apenas à nossa família, nossos pais, avós, bisavós e bisavós das bisavós. Falo também daqueles que viveram nesta terra antes de nós, que plantaram, colheram e criaram suas famílias e ainda sobre aqueles que viveram a Tradição antes de nós: os druidas clássicos do passado e aqueles druidas mais próximos, nossos iniciadores e os iniciadores deles.

Hoje honramos nossos ancestrais, mas no futuro serão nossos descendentes que nos honrarão.


5. Gostaria de acrescentar algo mais?

Quero agradecer a iniciativa da Corrente RJ de mostrar várias formas de nossa Fé. Esse tipo de ação é importante para nos unirmos e sermos cada vez mais fortes. Devemos aprender com nossos erros: nossos antepassados eram desunidos e por isso sucumbiram ao Império Romano, mas nós devemos os vencer. Reflitam: quem são os "romanos" de hoje?