quarta-feira, 9 de julho de 2014

O Cemitério de Carrowkeel e o Tempo Que Não Passava

(Por Laise Ayres)


A entrada de Carrowkeel
Vínhamos da cidade de Sligo à tarde, por estradinhas serpenteantes no meio do nada, cruzando uma área claramente rural, com grandes espaços de terra sem nada construído pelo homem, e ovelhas a pastar preguiçosamente em largos retalhos dos mais variados tons de verde. Paramos na frente da porteira de uma fazenda, parecia, com uma placa solicitando que visitantes fechassem o portão depois de entrar. O carro teve que ficar num espaço diante da porta, e a estradinha que subia e subia pela montanha era para ser percorrida a pé. Uma discretíssima placa, já no começo da trilha, indicava o local onde estávamos: Carrowkeel.

De Carrowkeel é possível ter uma vista privilegiada da planície de Moytura, que nesta foto é a área para além do Lough Arrow, esse grande lago.
Carrowkeel, em irlandês An Cheathrú Chaol, é um cemitério megalítico, um dos quatro maiores da Irlanda, localizado num complexo de montanhas próximo ao Lough Arrow, em County Sligo. Neste cemitério são encontrados quatorze cairns, alguns ainda de pé e outros já há muito desmoronados. Muito perto, no complexo Keshcorran, há mais seiscairns e, não longe dali, mais perto do Lough Arrow, há um outro imenso, aparentemente relacionado aos vinte primeiros, chamado Heapstown Cairn. Este é também famoso por sua menção na Segunda Batalha de Moytura (Cath Maige Tuiread), uma luta mítica entre os Tuatha Dé Danann e os Fomorian. Conforme diz a lenda, o médico dos Tuatha, Diancécht, fez um poço de cura no qual os guerreiros banhavam-se, e saíam de lá perfeitamente recobrados e sem ferimentos de guerra. Descobrindo esse poço como grande vantagem dos inimigos, cada guerreiro Fomorian pegou uma pedra do Rio Drowes para jogar no poço. Tantas pedras foram lançadas que elas cobriram o poço e depois formaram uma enorme pilha sobre ele, e diz-se que essa grande pilha de pedras formou o Heapstown Cairn.

Esquematização de uma tumba de passagem
Na verdade esses cairnssão as chamadas tumbas de passagem, erguidas por um povo neolítico de nome desconhecido, que ocupou-se em construir essas tumbas de passagem (além de tumbas-portais, osdólmens, círculos de pedras, etc) por toda a Irlanda, tantas que hoje em dia restam mais de mil desses monumentos. A estrutura dos cairns é sempre muito semelhante: trata-se de uma entrada estreita, através da qual muitas vezes é necessário engatinhar ou até se arrastar para passar, que segue por um corredor igualmente estreito até uma câmara central. Essa câmara geralmente liga-se a “sub-câmaras”, geralmente três mas às vezes mais, que se assemelham a altares. Os mortos eram queimados do lado de fora dos cairns, especula-se que de acordo com algum preceito ritualístico, e depois suas cinzas eram depositadas nessas “sub-câmaras”, que às vezes possuíam pedras semelhantes a altares.
Para cobrir essa estrutura eram usadas pedras de diversos tamanhos, organizadas em espiral para fazer um teto, e arranjadas tão habilmente que auxiliavam o escoamento da água da chuva de modo que não molhasse o interior da câmara. Por fim, mais pedras eram empilhadas por cima da estrutura inteira, e acredita-se que terra e vegetação cobriam a pilha de pedras, de modo que os cairns assemelhavam-se a colinas verdes, mas com uma porta de entrada. Uma entrada que, por muitos, é até hoje considerada uma passagem para o Outro Mundo.

Entrada de Newgrange
O mais popular cairn da Irlanda é sem dúvida o Brú na Bóinne, ou Newgrange, que é famoso pelo espetáculo anual que o sol, ao nascer na manhã do Solstício de Inverno, realiza. Ele adentra através de uma estreita passagem, iluminando a câmara interna e desenhando no chão da tumba uma espécie de obelisco de luz apontado diretamente para o que parece ser um altar central. Newgrange é datado de 3200 a.C. aproximadamente, o que o faz mais antigo que Stonehenge. Os cairns de Carrowkeel, segundo datações por carbono 14, também são muito antigos, possuindo, como Newgrange, entre 5400 e 5100 anos de idade, o que significa que também são 500 a 800 anos mais velhos do que as pirâmides do Egito.
Ao longo das diferentes ondas de povos que foram encontrando seu lar na Irlanda, esses cairns foram apropriados, e utilizados de várias formas. Alguns, como o Heapstown Cairn e o próprio Brú na Bóinne, que diz-se ser o lar de deuses como o Daghda e Oengus mac Óg, tornaram-se foco de lendas. Outros foram utilizados de forma muito prática e direta, como o de Knowth, que em certa época teve uma cidade construída em seu topo, e suas câmaras internas utilizadas como souterrain, uma rota de fuga subterrânea a ser utilizada em caso de ataque ou invasão.
Mas nas montanhas silenciosas de Carrowkeel, os cairns parecem ter sido deixados em paz.
Conforme subíamos, por uma trilha íngreme e serpenteante que contornava a montanha, maravilhávamos-nos com a vista que se descortinava diante dos nossos olhos. Devo ter tirado mais fotos nessa subida do que tirei de quase qualquer outro lugar que visitamos (exceto talvez os Cliffs of Moher), principalmente quando chegamos a uma pontinha da montanha e observamos a planície lá embaixo… aninhada contra o Lough Arrow, que brilhava azul sob um céu risonho de verão, estava a planície de Moytura, a mesma onde os Tuatha Dé Danann teriam enfrentado os Fomorian, e onde Lugh teria cumprido seu destino matando seu avô Balor. Era uma visão de tirar o fôlego.

De onde estávamos era possível ver, lá no alto da montanha de Keshcorran, o cairn de Morrighan.
À esquerda, no topo de um monte bem alto, a montanha de Keshcorran,estava outra surpresa: aquele que dizem ser ocairn de Morrighan. Ele estava distante, e não passava de um calombinho acinzentado, meio brilhando ao sol no topinho do morro, mas mesmo assim não consegui me impedir de fazer um verdadeiro book fotográfico dele!… É que dizem que os Deuses, após a chegada dos Milesians, retiraram-se para as colinas, e cada cairn passou a ser o lar de um desses Deuses… que agora pertenciam ao Povo das Fadas, ou Povo da Colina, e viviam nos sídhe. Na hora a localização do cairn de Morrighan me pareceu gigantesca de alta, e fiquei me perguntando se não foi impressão minha, já que tenho esta Deusa em tão alta conta… mas depois fui ler que de fato o cairn no topo de Keshcorran é o mais alto de County Sligo, e é mais alto até do que o da Rainha Medb, que é célebre, e fica em Knocknarea.
Afinal, chegamos ao primeiro cairn de Carrowkeel, o primeiro que vi assim de perto, e ele estava inteirinho, de pé. A entrada pareceu pequena à primeira vista, mas quando realmente tentei entrar descobri que era bem mais larga do que parecia, e mais alta também. Lá dentro era apertadinho e estava bem iluminado, mais do que eu esperava que estivesse. Havia um cheiro diferente, indefinível, mineral mas também inexplicavelmente doce. Toquei as pedras com reverência, observei como elas apoiavam-se umas nas outras para formar o teto, procurei memorizar cada detalhe. Foi uma sensação totalmente única, um nó no peito e um arrepio muito intenso… e a certeza, total e indiscutível, de que aquele era um lugar sagrado.
Vimos outros ali naquele mesmo espaço (eles são realmente muitos, se você chega no alto da montanha e olha em volta, consegue discernir vários), e alguns haviam desmoronado e outros ainda estavam de pé. Mas só entrei em mais um, que foi também o que mais me impressionou.

Entrada de um dos cairns em Carrowkeel (o meu favorito)
Este tinha a entrada bem mais apertada, um corredor muito mais longo e estreito, tive que ir por ele de gatinhas, e lá dentro a câmara era muito maior e estava quase que totalmente escura. Lá dentro estava fresco, não tinha o ar parado que esperaríamos de uma caverna, e o cheiro era surpreendentemente bom. O teto era muito, muito alto, e dentro das “sub-câmaras” estava completamente negro, sem um raiozinho de luz que fosse.  Nesse lugar senti uma presença muito forte, que eu não soube bem precisar o que ou quem seria, apenas uma sensação que me sacudiu os ossos, e uma certeza de que eu definitivamente não estava sozinha ali. Na verdade, pareciam ser várias presenças. Não consegui resistir e fiquei lá dentro bastante tempo sozinha, meditando e conversando com essas presenças, acariciando cada parede e sentindo as pedras macias como se eu quisesse deixar uma impressão delas na minha pele.
Quando saí, vi que meus companheiros falavam com um homem, que apresentou-se como druida ou xamã, e afirmou que aqueles túmulos estavam todos assombrados. Eu simplesmente sorri, e contemplei a luz que parecia não acabar nunca, um sol que descia lentamente, tão devagar que parecia parado, como se o tempo houvesse congelado ali. O céu parecia apenas levemente mais rosado, mas haviam passado-se horas, não haviam? Era uma sensação como a de estar de fato no Outro Mundo. Na verdade, apenas quando deixamos Carrowkeel é que o sol pareceu despencar de repente, numa pressa súbita de acabar o dia.

O sol se pôs muito rápido depois que fomos embora.
Ficamos lá ainda muito tempo, com o sol imóvel no céu a nos observar, apenas sentindo o local. Porque essa é a palavra-chave, sentir. Carrowkeel definitivamente não é um lugar apenas para ser visto. Na verdade, a sensação por lá é de que o corpo é o de menos, o corpo e seus limitados sentidos mortais.
Carrowkeel é um lugar para se visitar com a alma.
Carrowkeel fica no County Sligo, perto de Boyle, County Roscommon. Coordenadas:  54.059086, -8.386199‎ (+54° 3′ 32.71″, -8° 23′ 10.32″). Cheque a visão no Google Maps neste link. Um lugar que merece estar no roteiro de qualquer um que vá à Ilha Esmeralda…

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