domingo, 6 de julho de 2014

Lughnasadh e suas consequências

(Por Laise Ayres)

tailtiuAproxima-se o Lughnasadh, que inaugura a época das colheitas. A colheita é um momento auspicioso, mas também muito ambíguo, pois o que se colhe depende inevitavelmente do que se plantou.
Quando falamos em colheita, nos vem à mente aquelas paisagens bucólicas do campo, as frutas maduras no pé, mulheres de lenços nos cabelos e cestas nas mãos recolhendo o fruto do seu trabalho. Mesmo aqueles que viveram a vida toda num apartamento e jamais viram esse quadro pessoalmente acabam associando a colheita à noção de fartura, uma cornucópia cheia de frutas, uma mesa cheia de comida. Mas há, é claro, o outro lado da colheita: quando houve uma praga, ou quando houve uma enchente, ou uma seca, ou um acidente, e perde-se todo o fruto de um trabalho.
Atualmente, com fertilizantes, pesticidas, maquinário e sistemas industriais de plantio, é mais raro que se perca uma colheita inteira por um acidente desses, mas no passado isso era comum. Para os nossos Ancestrais, a terra era uma mãe, às vezes generosa, mas às vezes dura também, e precisava ser muito bem cuidada para dar os frutos desejados. Para uma boa colheita, era necessária uma grande dedicação.
Essa época, do Lughnasadh, era portanto a hora da verdade. O momento em que descobriríamos se o nosso trabalho foi suficiente, se nosso plantio foi adequado, se nosso zelo foi o bastante. Às vezes era, e o resultado era uma mesa farta, barrigas cheias, o futuro da tribo assegurado. Às vezes não era, e essa era a maior tragédia possível.
A hora da verdade, do “vamos ver”, das consequências e dos resultados, é isso o que Lughnasadh representa.
E isso aplica-se à nossa vida moderna de muitas formas. Percebo que essa época, de meados de janeiro a meados de fevereiro, é sempre um momento quase que de acerto de contas. Muitos projetos meus culminam nessa época, de forma aparentemente coincidental, e geralmente é nessa época que anuncia-se o tom que o ano inteiro terá. É um momento de consequências, reviravoltas e transformações aparentemente súbitas, mas que sempre refletem atitudes e decisões tomadas meses atrás.
Um dos itens marcantes dessa época do ano, aqui no Brasil, são as chuvas. Chuvas intensas, constantes, devastadoras. Nessa época do ano é que temos enchentes, pessoas que perdem tudo o que tinham, tragédias. Parece um recado da natureza: se tivesse aberto canais de escoamento, jogado o lixo em local apropriado, construído com responsabilidade, isso não teria acontecido.
Se tivesse arado a terra com zelo, plantado com cuidado as melhores sementes e acompanhado o crescimento de perto, a colheita teria sido garantida. É a mesma coisa, com outras palavras.
Esse sentimento, de “a hora da verdade”, a hora da prova, do teste, da concretização, também se reflete em um dos hábitos mais antigos do festival de Lughnasadh, a feira de Tailtiu, onde se realizam jogos fúnebres em que os participantes devem provar o seu valor ao vencer provas de força, habilidade, inteligência ou coragem.
Tailtiu era a mãe adotiva de Lugh, um dos mais célebres deuses da Irlanda. A lenda conta que, para garantir o futuro da tribo, ela realizou um grande sacrifício de limpar a planície central da Irlanda, tornando-a própria para a agricultura. O esforço foi tanto que ela não resistiu, e morreu. O Dindshenchas conta:
“11. Ela lhes disse em meio à sua doença
(fraca ela estava, mas não sem palavras)
que eles deveriam organizar jogos fúnebres em seu lamento
- zelosa havia sido sua façanha.
12. Ao início do mês de agosto ela morreu, em uma segunda-feira,
no Lughnasadh de Lugh;
ao redor de sua sepultura, daquela segunda-feira em diante,
é realizada a Feira Maior da nobre Erin.
13. Tailtiu dos brancos flancos
proferiu em sua terra uma verdadeira profecia,
que enquanto todo príncipe a aceitasse,
Erin não ficaria sem perfeita canção.
14. Uma feira com ouro, com prata, com jogos,
com a música das carruagens,
em que se adornariam o corpo e a alma
através de sabedoria e eloqüência.
15. Uma feira sem ferir ou roubar qualquer homem,
sem confusões, sem discussões,
sem saques, sem disputas de propriedade,
sem acusações, sem julgamentos, sem invasões, sem prisões.”
O tema do sacrifício caminha junto com o tema da colheita, pois não há fruto sem esforço. Não há habilidade sem dedicação.
E Lugh é considerado o senhor de todas as habilidades, o Samildánach. Ele é guerreiro, curandeiro, sábio, marinheiro, mago, ferreiro… Seu nome quer dizer “luz”, e conta-se que, quando ele veio, seu rosto brilhava tanto que todos pensaram que o sol nascia do oeste.
Ele também é filho de duas linhagens rivais da Irlanda, os Tuatha De Danann e os Fomorianos. Ocorreu que Cian, das Tuatha, visitou Ethlin, filha de Balor dos Fomor, e de sua união é que nasceu Lugh. Ele foi criado, entretanto, por Manánnan, senhor do mar, e com ele aprendeu inúmeras habilidades e obteve muitas de suas várias armas e equipamentos. Sua mãe adotiva, Tailtiu, era uma Fir Bolg, um povo que também lutou contra as Tuatha De Danann e perdeu. Ele representa, sob esse aspecto, a unificação da Irlanda. Os Tuatha De Danann são, em geral, deuses de habilidades humanas, artesãos, artífices, curandeiros, poetas, músicos, guerreiros. Os Fomor, por outro lado, são deuses mais fundamentais, das profundezas, relacionados a forças da natureza, indomáveis e selvagens. Lugh seria a síntese e a união de ambas as características, ligando tribo e terra, e após a decisiva guerra entre os dois povos na qual ele foi aclamado rei entre os deuses, os Fomorianos ensinam aos Tuatha a agricultura.
Conta-se que, quando chove na Feira de Tailtiu, seja durante ou depois, é sinal da presença de Lugh. É a chuva que molha as plantações e torna a colheita possível (pois o excesso de sol prejudica mais do que ajuda os frutos), e também a luz do raio que corta o céu.
lughEssa visão de Lugh como um raio é algo que muito me agrada, particularmente, porque vejo nela um sentido muito profundo. O raio é uma luz que conecta, de fato, o céu e a terra ou o céu e o mar. É imprevisível, dinâmico, múltiplo, e espalha-se em todas as direções. Raio também é energia, força e calor, e gera fogo. Foi o raio na árvore, dizem, que gerou o fogo que foi primordial para que os primeiros homens se desenvolvessem, pois o fogo permitiu que a carne fosse cozida, por exemplo, o que foi o principal responsável pelo aumento do nosso telencéfalo.
Tudo, então, desde o cozimento da comida, passando pela cerâmica, a forja, e depois as sucessivas revoluções industriais que nos trouxeram carros, circuitos eletrônicos, aviões e smart phones começaram ali, naquele raio, naquela árvore. O fogo é a mudança, a transformação, o fazer isso virar aquilo, uma coisa tipicamente Aes Dana, mas primordialmente veio do raio, uma força indomável da natureza, que apenas a muito custo o homem conseguiu domesticar.
Também associamos a luz e o brilho às ideias, à criação, à inspiração, ao momento “eureca”. E nossos pensamentos não são tempestades elétricas no nosso cérebro? Cada pensamento é um impulso elétrico disparado de um neurônio para o outro, gerando conexões delicadas e complexas. E cada movimento de cada músculo é provocado por um impulso elétrico, que desencadeia o chamado potencial de ação, responsável pela entrada de cálcio e saída de potássio de dentro da célula, o que gera a contração. Se pensarmos em Lugh como o raio, então ele está presente em cada pensamento, cada movimento, dando impulso, conexão, ligação, e possibilitando o desenvolvimento de inteligências e habilidades.
Lugh integra, une, conecta, estabelece relação. Suas principais armas, a lança Gáe Assail e a funda, são de arremesso, cortando o ar e ligando um ponto ao outro. Tenho a visão de que, quando encontramos Lugh, encontramos essa integração, para o melhor e para o pior. Diante dele, nossas habilidades são testadas, nossa dedicação e capacidade é posta à prova. Às vezes interpreto o Lughnasadh como uma chance de encarar meus próprios demônios internos, me ver como sou de verdade, e tenho a oportunidade de enfrentá-los ou até de fazer as pazes com eles. É aquela noção da colheita novamente, em que tudo aquilo o que eu não plantei direito, não fiz direito, não soube resolver, volta para mim como consequência. É um momento de “cair na real”, principalmente depois da euforia cheia de promessas do solstício de verão.
O sol do verão brilha com força a pino, não deixando muitas sombras, e sob essa luz desveladora você ou é, ou não é. A chuva lava, limpa, torna nu, expõe. Não tem onde se esconder, nem tem porquê. Nesse momento, é disso que precisamos.
É que esse é também um momento de gratidão. Porque, não importando se a colheita for farta ou não, não importando se nossos atos geraram consequências boas ou ruins, é um momento de aprendizado único, e sob esse aspecto toda consequência é boa. É uma reflexão, é um conhecer-se melhor, é um provar-se quem você é de verdade, sem máscaras ou subterfúgios. É uma oportunidade para crescer.
E a colheita está apenas começando.

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