terça-feira, 16 de setembro de 2014

ESP®BR: Palestra "Comunicação com os Três Mundos - um olhar Reconstrucionista Irlandês" por Laise Ayres

Esta palestra, realizada dia 13/09/2014 no Templo de Apolo (Quinta da Boa Vista, São Cristóvão, Rio de Janeiro/RJ), foi criada especialmente para o Encontro Social Pagão®, organizado pelo Projeto Gaia Paganus®. O objetivo era apresentar aos participantes do Encontro um olhar Reconstrucionista Irlandês sobre como se dá a comunicação com os Três Mundos ou Três Reinos Celtas - Céu, Terra e Mar -, e com os Deuses, Ancestrais e Boas Gentes que os compartilham conosco.

1. Sobre a autora

 Laise Ayres, elo da Corrente RJ, 15 anos de paganismo. Não gosta do termo 'druida', ou 'druidismo' para definir suas práticas, afinando-se mais com o título Reconstrucionista Irlandesa, ou simplesmente Pagã Irlandesa. Usa como base para suas práticas os mitos, registros literários, costumes folclóricos, e características arqueológicas e geográficas da Ilha Esmeralda, mas tem como espinha dorsal de sua vivência religiosa gnoses pessoais, meditações e insights. É há 6 anos integrante de um clã privado, sem nome, na cidade do Rio de Janeiro.


 2. O que é Reconstrucionismo Celta

 É um movimento politeísta, animista, religioso e cultural cujo objetivo é reconstruir - reconstituir - aspectos religiosos e culturais das tradições célticas pré-cristãs através de elementos sobreviventes nos registros históricos, literários, nas evidências arqueológicas e nas práticas folclóricas nos países que descendem daqueles povos, além de, é claro, da língua. Nesse contexto, a língua acaba sendo uma das fontes preciosas de insight a respeito da cultura e, consequentemente, do modo de ser, sentir e crer do povo celta. Na Irlanda, os elementos célticos sobrevivem principalmente através da língua, o Irlandês, do registro dos monges cristãos em diversos manuscritos, e através das práticas folclóricas tradicionais.

A ideia do Reconstrucionismo é de certo modo reconstruir como os diferentes paganismos celtas se pareceriam hoje em dia se não tivessem sido interrompidos pelo cristianismo - a exemplo do Hinduismo, que evoluiu e mudou, mas manteve sua essência. É um caminho de muita pesquisa e estudo, e muito debate entre praticantes, embora muitos pontos atualmente já tenham sido definidos coletivamente, e mais ou menos estabelecidos.

3. Os Três Mundos ou Três Reinos

O conceito de Três Mundos (ou Três Reinos) é muito marcante na cosmologia irlandesa. Esses Três Mundos são um esquema dentro do qual está tudo o que existe - Céu, Terra e Mar. O maior símbolo dos Três Mundos é o An Thríbhís Mhór, o Grande Triskel, as três espirais unidas por um ponto central.

Os Três Mundos aparecem em vários pontos na cultura irlandesa - a Invocação de Blathmac mac Cú Brettan diz “Neamh nglas, muir más, talamh cé.” - “Céu azul, belo Mar, Terra presente.” Também há um juramento irlandês que diz: “Que o céu caia e me esmague, que o mar se erga e me afogue, que a terra se abra e me engula se eu quebrar esse juramento.”

Ver o mundo como uma junção de Céu, Terra e Mar faz muito sentido se consideramos que a Irlanda é uma ilha. Então o céu sobre suas cabeças, a terra sob seus pés e o mar circundante como ligação com o resto do mundo (e com todos os outros) podem de fato ser veículo para o próprio modo como o irlandês vivenciava sua realidade.

Há muitas relações simbólicas vistas entre o Céu, a Terra e o Mar. Em nossos corpos, o Céu é o fôlego, a Terra os ossos, e o Mar, o sangue. Na árvore, os galhos tocam o Céu, as raízes ligam-na ao Mar sob a Terra, que depois preenche a árvore através dos veios como seiva, e o Tronco que surge sobre a Terra cria toda a conexão entre o que está em cima e embaixo. No tempo, o Mar é o passado, aquilo o que sempre foi, o Céu é o futuro, pressagiando o que está por vir e trazendo a mudança, e a Terra é o presente a ser desfrutado.

O equilíbrio, a harmonia, brotam da união desses Três Reinos, representado, no Triskel, pelo triângulo ou círculo no ponto em que unem-se as espirais.

É comum, na prática Reconstrucionista, manter-se um altar para cada Reino, ou áreas para os Três Reinos no altar (meu caso).

Eu tenho no altar três árvores que uso para representar os Três Reinos. Uma verdinha representando a Terra, uma dourada representando o Céu e uma roxa e preta representando o Mar.

4. O Mar, a Terra e o Céu

O Além-Mar é o Outro Mundo para a Irlanda (e para a cultura celta em geral). É cruzando o Mar que heróis irlandeses encontram Tir na nOg, a Terra da Juventude, o país das fadas, dos Antigos, dos Ancestrais. Há uma série de contos na literatura irlandesa chamada Immrama, viagens mágicas, em que o herói parte com seu barco em uma viagem de autodescobrimento, que não raro envolve criaturas fantásticas e encontros com Deuses.

Oisín, filho do herói Fionn Mac Cumhaill e célebre guerreiro e poeta dos Fianna, certa vez foi convidado pela filha do deus do mar Manannán, Níamh Chinn Óir, para ir com ela a Tir na nÓg, a Terra da Juventude. Após ficar lá com Níamh por três anos, Oisín resolveu retornar à Irlanda. O problema é que o tempo em Tir na nÓg passa diferente, e na verdade passaram-se 300 anos na Irlanda. Então Níamh avisou Oisín que, se ele tocasse com os pés o solo da Irlanda, ele sentiria os efeitos dos 300 anos e ficaria murcho e velho. Ele retornou à Irlanda mesmo assim, cavalgando Énbarr, o cavalo branco de Níamh que corre igualmente bem sobre a terra e sobre o mar.

Ao chegar à Irlanda, Oisín descobriu que muitas coisas mudaram nesses 300 anos. O antigo lar de seu pai encontrava-se em ruínas, e todos os que ele um dia conheceu estavam mortos há muito. Mas os próprios homens daquela terra estavam diferentes, menores, mais fracos e menos sábios, parecia, e ele compadeceu-se ao ver a dificuldade com que eles moviam pedras para criar uma estrada, o que o motivou a ajudá-los. Ao mover a pedra, que era pesada, a correia da sela de Énbarr não aguentou a pressão e partiu-se, fazendo com que Oisín desequilibrasse-se e caísse no chão, transformando-se em um velho imediatamente conforme previsto por Níamh. O cavalo retornou a Tír na nÓg, e Oisín, agora um ancião cuja vida aproximava-se do fim, permaneceu na Irlanda, e em algumas versões desse conto ele encontrou ninguém menos que São Patrício e com ele teve uma longa conversa antes de morrer.

O Mar nos transforma, nos revela, nos põe à prova. Nos faz entender quem somos e o que nos compõe.

É no local destinado ao Mar que normalmente coloco os objetos relacionados aos Ancestrais no meu altar: terra das casas onde morei, pequenos objetos simbólicos da minha ascendência e da minha história - o De Onde Eu Vim.

Existem três tipos de Ancestrais honrados no Reconstrucionismo - os culturais, os "carnais" e os locais. Por exemplo, meus antepassados incluem os Fianna - culturais, por adoção - meus avós, bisavós, etc - “carnais”, biológicos - e os brancos, negros e indígenas que viveram nesta terra antes de mim. Mantenho símbolos que os representem, fotografias e objetos pessoais de familiares já mortos, uma figa representando meu lado negro e umbandista, um muiraquitã representando a cultura indígena que habitou este solo antes de mim, Eu os honro, homenageio e realizo oferendas, além de rezar para eles.

Quando falamos em Céu, Terra e Mar assim arrumadinho, parece que há uma distinção toda organizadinha entre eles, mas a verdade é que eles se misturam bastante, pois há Mar dentro da Terra (lençóis d'água, fontes, poços), Terra sob o Mar (cavernas submarinas, fundo do mar), Terra tocando o Céu (montanhas), Céu tocando o Mar (linha do horizonte). Do mesmo modo, os Ancestrais, os Deuses e as Boas Gentes (também chamados de Sídhe, Povo das Fadas, Bom Povo ou Espíritos da Terra) misturam-se bastante.

Por exemplo, conta-se que os Deuses, as Tuatha Dé Danann, com a chegada dos Milesians, correu para as colinas, reduzindo e transformando-se nas Fadas, em Sídhe. Essas colinas mencionadas, são na verdade os cairns, tumbas neolíticas espalhadas por toda a ilha, construções feitas de pedra que se parecem bastante com colinas quando vistas de fora, mas que possuem entradas e câmaras internas. Esses cairns, construídos por um povo que viveu na Irlanda antes dos celtas, aparecem muito na mitologia, pois pontos geográficos são mencionados em todos os contos que falam dos Deuses: rios, planícies, montanhas, pedras - e cairns.

O cairn mais famoso é Newgrange, cujo nome irlandês é Brugh na Boinne, o Palácio do rio Boyne. Esse cairn figura no mito como lar da deusa Boann (que deu nome ao rio) e seu marido Elcmar - e, mais tarde, do filho de Boann com Dagda, o deus Aengus. Aengus, usando de um ardil linguístico (em que pede a Elcmar para que o Brugh pertença a ele dia e noite - ao que ele concede, entendendo, num equívoco compreensível dada a estrutura da língua irlandesa, que não possui artigo indefinido, que Aengus o queria por um dia e uma noite, quando na verdade Aengus queria dizer para sempre) toma para si o Palácio, tornando-se o novo senhor do Brugh. Mas há outros cairns famosos, considerados como "a última morada" dos Deuses, como o cairn de Morrighan em Keshcorran, e o de Medb em Knockarea.

Contudo, esses cairns, bem como dos dolmens (as portal tombs), são túmulos. Lá dentro eram depositadas as cinzas dos mortos após serem cremados, e lá os Ancestrais eram reverenciados. Em tempos mais recentes, bebês que morriam antes de serem batizados, que por esse motivo não podiam ser enterrados no cemitério cristão, eram depositados por seus pais nessas estruturas, por entendê-las como solo sagrado. Deuses, Sídhe e Ancestrais. Tudo em uma mesma estrutura. Representação física dos Três Mundos.

Para se relacionar com as Boas Gentes (que sempre chamamos assim porque, caso estejam nos ouvindo, é considerado bom augúrio que os consideremos bons), é comum que oferendas sejam feitas nessas construções (cairns, dolmens), de leite, manteiga, pão, mel ou cerveja, que são considerados itens difíceis para as Boas Gentes obterem normalmente na natureza.

Se o Mar e, principalmente, a Terra, são constantes, o Céu pode representar o inalcançável. Toda mudança parece vir do Céu - o sol, o vento, a chuva, a neve, a mudança do clima, o claro e o escuro, as aves migratórias, os augúrios. O Céu é inalcançável e incontrolável, pelo contrário, ele é que nos rege. As forças celestiais eram reverenciadas pelos celtas e pelo povo que veio antes na Irlanda, basta ver como muitos cairns são posicionados de forma que o sol adentra a câmara interna apenas numa data e numa hora específica - sendo o mais famoso nesse fenômeno Newgrange, cuja câmara interna permanece às escuras por todo o ano exceto no dia do solstício de inverno, quando o sol entra e ilumina o altar central sob o grande Triskel gravado na pedra.

Em um dos mais importantes (se não O mais importante) manuscrito irlandês, A Segunda Batalha de Moytura (Cath Magh Tuired), conta-se a seguinte passagem:

1. Os Tuatha De Danann estavam nas ilhas no norte do mundo, estudando conhecimentos ocultos e feitiçaria, artes druídicas e bruxaria e ofícios mágicos, até que eles sobrepujaram os sábios nas artes pagãs.
2. Eles estudaram o oculto e conhecimentos secretos e artes diabólicas em quatro cidades: Falia, Gorias, Murias e Findias.
3. De Falias foi trazida a pedra de Fal, que foi depositada em Tara. Ela costumava berrar sob cada rei destinado a conquistar a Irlanda.
4. De Gorias foi trazida a lança que Lug tinha. Nenhuma batalha jamais perdurou diante dela, ou do homem que a segurava em sua mão.
5. De Findias foi trazida a espada de Nuadu. Ninguém jamais escapou de seu golpe, tendo sido ela tirada de sua bainha mortífera, e ninguém pôde resistir a ela.

6. De Murias foi trazido o caldeirão do Dagda. Nenhuma companhia que foi até ele jamais o deixou insatisfeita.

Eu tenho como gnose pessoal pensar que os Deuses, antes de vir à Terra pelo Mar em suas célebres embarcações, quando estudavam conhecimentos ocultos e feitiçaria nas "ilhas no norte do mundo", estavam no domínio do Céu, no inalcançável, no místico. Então, no meu altar, no canto relacionado ao Céu, eu coloco representações dos Quatro Tesouros, pensando nas suas cidades de origem (Falias, Gorias, Murias e Findias) como os quatro pontos cardeais que mapeiam a Terra quando vista do Céu.

Quando as Tuatha Dé Danann vieram à Irlanda, foi como parte de uma série de invasões sofridas pela ilha, que incluem vários outros povos, como os Fir Bolg, os Milesians, a Companhia de Cessair, entre outros. Há um povo, no entanto, que sempre esteve lá, os Fomorians. Os Fomorians são descritos como gigantes, desfigurados, com poderes mágicos, violentos, rudes e belicosos. Descreve-se que eles vivem sob o Mar. Ao passo que os Deuses, das Tuatha, possuem atribuições eminentemente humanas (Goibhniu é Ferreiro, Dian Cecht é Médico, Oghma é associado à Eloquência, e Lugh tem todas as habilidades existentes no mundo e mais algumas). Quando as Tuatha vencem a batalha contra os Fomorians, o dom concedido pelos perdedores é ensinar aos vencedores o uso da Terra, a agricultura. Diante disso, pode-se pensar que esse processo de luta, dominação e compreensão do homem pela Terra é imensamente simbólica. A figura de Lugh Senhor de Todas as Habilidades, filho de pai Tuatha e mãe Fomorian, que é também quem vence a guerra ao matar seu avô Fomorian, pode ser vista como unificadora, pois no conto é a pessoa dele que faz Bres, o Fomorian, revelar os segredos da agricultura.

Lugh, embora não seja um Deus Sol, é ainda um Deus eminentemente Solar - no conto O Cortejo de Étain (Tochmarc Étaine), o povo pensa que o Sol está nascendo do Oeste, mas na verdade é Lugh que chega daquela direção e seu rosto brilha tanto quanto o Sol. Sua ligação com o Céu, para mim, é inegável. Ele é como o Céu que desce e domina Terra e Mar (lembrando que Manánnan, Deus do Mar, é pai adotivo de Lugh).

No Reconstrucionismo - bem como em todas as vertentes pagãs - não somos nós que escolhemos os Deuses, eles é que nos escolhem. Para o meu altar fiz, por gnose pessoal, intuição súbita e execução um tanto obsessiva, uma série de símbolos para os Deuses que me escolheram, usando itens que tivessem relação estreita com esses Deuses, fosse na forma, fosse no uso, fosse no material. Há, por exemplo, um rechaud em forma de panela de barro sobre uma lareira, para Bríd - e optei pelo uso do barro por haver nele a Terra umidificada pela água (Mar), que é moldada por mãos humanas (Arte, Inspiração, setores de Bríd) e depois é modificada pelo fogo (Céu). A panela representa o poço, pois ponho água e essência ali dentro, enquanto a lareira é um símbolo comum de Bríd em sua face protetora do lar e mantenedora da chama. Tenho também um candelabro dourado para Lugh, com ramos de trigo, uma lança e uma funda decorando - e lá acendo velas para esse Deus. Tenho um caldeirão cheio de grãos, e uma folha de carvalho em homenagem ao Dagda, uma pequena caixa de prata com um crânio de corvo, algumas pedras e algumas penas negras para Morrighan, uma ânfora de louça decorada com ervas curativas tendo dentro água da fonte dedicada a Airmid, uma pequena garrafinha feita de concha e cheia de água do mar entre outros objetos para Manánnan... entre outros. Uso esses símbolos para me sentir mais próxima dos Deuses de minha devoção.

Para nos sentirmos próximos dos nossos Deuses nós fazemos orações, canções, rituais, oferendas. As oferendas podem ser materiais (por exemplo mingau de aveia com cerveja preta para o Dagda) ou imateriais (horas de treinamento de violino dedicadas a Bríd, ou oferecer água a animais de rua em nome de Flidais). Há também pactos que podem ser firmados. Por exemplo, dediquei a Macha um geis (uma espécie de tabu, em que abstém-se de algo para conseguir alguma outra coisa, como Cu Chulainn possui o geis de não poder comer carne de cão, ou Cruinniuc recebeu de sua mulher Macha o geis de não contar a ninguém quem ela é ou do que ela é capaz. Por sinal, é claro que, nos dois casos, os geasa foram quebrados, trazendo grave prejuízo). Eu pedi a Macha para engravidar, e firmei com ela o geis de que eu não brigaria, com ninguém, em situação nenhuma, até conseguir meu intento. Ela, como padroeira da gravidez e do parto, concedeu meu desejo. Foi mais de um ano sem brigar, e foi bem difícil. Mas acho que me fez muito bem (o geis tem como uma de suas características trazer algum crescimento pessoal para quem compromete-se com ele).

Os Deuses, também, são vistos como Ancestrais. O Livro das Invasões (Lebor Gabala), conta da chegada dos Deuses à Irlanda como quem conta as histórias dos feitos de um antepassado distante. Na Irlanda, nós somos descendentes dos Deuses - como Cu Chulainn é filho de Lugh, como Diarmuit é afilhado de Aengus.

A unidade básica dos celtas é o clã, a família. Um coletivo de clãs é uma tribo. E é essa a relação que temos com nossos Deuses, com nossos Ancestrais, e também com as Boas Gentes. Nós chamamos pelos nossos Deuses da mesma forma que telefonamos pra nossas mães com um problema, e fazemos coisas por eles como quem dá um presente para um filho. É uma relação estreita, de colaboração, apoio, amor, convivência, conhecimento. Nós não invocamos nossos Deuses. Nós não os chantageamos. É uma relação familiar. Pois eles são, também, aqueles que vieram antes de nós, nossos Ancestrais. E eles são aqueles que dividem essa Terra conosco, como as Boas Gentes.

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