Começamos muito bem, com as bênçãos amazônicas de Mayra Ní Brighid, residente do Acre, que com muita simplicidade e perceptível sabedoria compartilha conosco um pouco da sua visão e da sua prática. Obrigada pela generosidade, Mayra! Que as Boas Gentes deixem presentes em seu caminho em nome da gente aqui do nosso Rio de Janeiro! :D
A entrevista é em duas partes: na primeira, Mayra respondeu a perguntas genéricas a respeito de suas práticas. Na segunda, fiz perguntas específicas para ela, baseada nas suas respostas da primeira parte. Foi lindo <3 espero que gostem tanto quanto eu!
Parte I (perguntas genéricas)
1. Identidade. Como você se
intitula, como chama sua prática religiosa? Na sua opinião, o que
distingue sua prática de outras dentro do Paganismo Celta?
Intitulo minha prática
religiosa como “Druidismo”, apesar de saber que esse termo não
seja o melhor para definir o que os celtas antigos praticavam, mas
creio que seja o melhor termo para definir uma religião moderna que
se inspira nesse antigo povo. E também por toda a história do
movimento, renascimento druídico etc.
Acho que cada região
brasileira apresenta características únicas, e essas
características se refletem na prática do paganismo. Da mesma forma
que cada pessoa tem suas características e essência, cada pessoa
pratica e vivencia o paganismo de uma forma única. E isso não é
ruim, pelo contrário.
2. Coletividade. Você pratica
sozinho ou em grupo? Pertence a alguma tribo, ordem, coven, clã?
Como se dá a entrada de novas pessoas no seu grupo? Há títulos ou
hierarquia de algum tipo em seu grupo?
No momento pratico
sozinha E em grupo (rs). Faço parte de um grupo, Clann an Samaúma,
que nasceu em Belém/PA, minha cidade natal, e onde a maioria dos
membros está. Estamos mantendo o grupo de estudos e nos reunindo por
meio da internet, é um pouco difícil, mas entendo que faz parte do
processo. Em breve, nos reuniremos presencialmente, se os deuses
quiserem.
Por hora não estão
entrando novos membros, pois estamos em fase de estruturação do
grupo. Mas no futuro abriremos para novos membros, e ainda não sei
ao certo como se dará esse processo, mas acho que passará por uma
etapa de estudos iniciais, participação em encontros abertos,
consulta a oráculos (para saber o que os deuses acham da pessoa no
grupo), um período de “teste” como membro, etc.
Não há hierarquia
definida no grupo, pois ainda somos poucos. Mas a ideia que vamos
trabalhar será de tribo e suas várias funções, ou seja, haverá
bardo, druida, guerreiro, músico, artesão, curador, devoto,
“semente” e convidados.
3. Devoção. Você é pan-céltico
ou exclusivo de alguma nação (irlandesa, escocesa, ibérica,
galesa, etc)? Como você escolheu seu panteão? Há divindades
específicas pelas quais você tenha devoção? Há algo que você
possa acrescentar a respeito dessa devoção?
Tenho muita afinidade com a cultura
gaélica (Irlanda e Escócia), e portanto cultuo mais os deuses
desses locais. Mas estudo e reverencio também os deuses da cultura
galesa, ibérica, gaulesa...
Os deuses que tenho mais afinidade e
devoção são Brighid, Dagda, Lugh, Aengus, Danú/Anann, Manánnan e
Cailleach.
Tenho afinidade com alguns deuses de
outras culturas também, embora eu não dedique um culto a eles. Mas
Shiva, por exemplo, tem um lugar especial no meu coração, e vez ou
outra escuto ou canto o seu mantra. Estou ficando próxima de
Pachamama também, devido à proximidade com a Bolívia e Peru (estou
morando no Acre). E também a Jiboia e a Borboleta Encantadas, forças
ancestrais dos povos indígenas do Acre, que nutro um carinho e
respeito muito grande.
Não os cultuo em minha prática pagã
celta, mas os reverencio e dedico um pouco de amor a eles em minha
prática religiosa. Em meu coração vibra a espiritualidade celta,
mas não posso ignorá-los quando esses outros deuses simplesmente
cantam e dançam na natureza à minha volta.
4. Prática. Que elementos compõem
sua prática? Há ritos? Orações? Oferendas? Roda do Ano Norte, Sul
ou Mista? Datas destinadas a determinadas divindades? Há uso de
altares, objetos mágicos ou simbólicos, ervas, flores, alimentos ou
cristais?
Sigo pela Roda Norte, pois na região
onde moro nosso inverno (época das chuvas) coincide com o inverno no
norte, e o verão (época da seca ou pouca chuva) coincide com o
verão de lá.
Além dos 8 festivais celebro também a
lua cheia e a lua nova, e mantenho algumas práticas devocionais
diárias, como orar ao acordar, ao ir dormir, ao almoçar, ao
preparar uma comida, ao tomar banho, ao acender uma chama, enfim.
Ah sim, tenho altares (algumas pessoas
preferem o termo “centros devocionais”, pra mim tanto faz rs, a
essência é a mesma) em casa. No altar principal tenho
representações dos Três Reinos e das Três Famílias, e é onde
realizo os ritos.
5. Ancestrais e Espíritos da
Terra. Na sua prática há algum culto a Ancestrais, sejam eles
culturais, físicos ou locais? Há introdução de elementos negros
ou indígenas? Há oferendas? Orações? Símbolos? Datas
específicas?
Em toda a minha prática há o culto
aos ancestrais. As religiões antigas, inclusive às célticas, são
centradas nos ancestrais. Não há porque ser diferente hoje. Em
todos os ritos eu os honro.
Não introduzo elementos negros ou
indígenas brasileiros em meus rituais, por exemplo, não canto uma
canção da Jiboia num rito de Samhain, mas tenho sim em meu altar
símbolos da cultura indígena e brasileira, pois fazem parte de
minha ancestralidade e os mantenho lá para me lembrar disso e
fortalecer minha ligação e meu respeito com eles.
Precisamos conhecer mais a cultura
tradicional dos povos daqui (Brasil), pois elas são tão ricas e
maravilhosas quanto as célticas. Não deixo nunca de me encantar com
a sabedoria dos indígenas e das comunidades tradicionais do
Brasil... Há tanto para nos ensinar, há tanta beleza e sabedoria...
Pena que só alguns percebam isso.
Quando sinto necessidade, celebro um
rito que honre os ancestrais da terra e espíritos locais, mas no
caso é um rito específico e não num “molde” ou liturgia
druídica, entende? Difícil de explicar... Mas enfim, sou druidista,
pagã celta, e também sou brasileira e amazônida, com muito amor e
orgulho :) .
Parte II (perguntas específicas)
1. Você mencionou o uso de oráculos
para verificar uma possível entrada em seu grupo. Quais meios
oraculares você pratica? Todos no seu grupo o praticam?
Comecei estudando o Tarot e depois
divinação pela água e fogo, mas não me aprofundei muito nesses
últimos. Estudei Runas por um tempo também, mas depois parei, não
bateu a afinidade. Há dois anos mais ou menos comecei a estudar o
Ogham, e tenho gostado muito. Recentemente, iniciei um processo de
estudo em um oráculo desenvolvido pela Caitlin Matthews, chamado
“Celtic wisdow oracle”, baseado numa ideia de clãs e
ancestralidade. E estou adorando! Tenho afinidade também com o
oráculo baseado no voo dos pássaros, mas esse tem sido mais
intuitivo e espontâneo para mim. Então, atualmente trabalho mais
com esses três últimos oráculos que mencionei (ogham, “oráculo
dos ancestrais” – da Caitlin – e o voo dos pássaros).
Nem todos no grupo usam oráculos, a
maioria conhece um pouco sobre o Tarot e o Ogham, mas não no sentido
prático e aprofundado.
2. Na sua prática você usa uma
língua gaélica? Ou usa apenas o português?
Até que gostaria
de usar mais o gaélico, mas não dá... Ô linguinha difícil de
estudar... rsrs. No máximo falo três ou quatro expressões em
gaélico durante um rito. Então, usamos mais o português mesmo. Mas
entendo que isso não minimiza a força do ritual... ou a sinceridade
da vivência espiritual. Os Ancestrais e os espíritos se comunicam
pela linguagem do coração, e não da fala...
3. Há uma liturgia em particular que
seu grupo usa? Vocês a desenvolveram ou basearam-se em alguma outra?
Pode falar um pouco sobre isso?
Sim, elaborei uma liturgia baseada em
algumas que conheci de grupos brasileiros e não brasileiros. Ainda
estamos experimentando essa liturgia, então ela ainda não está
fechada. Nem sei se um dia estará, pois acho importante a mudarmos
ou adaptarmos de vez em quando ou sempre que sentirmos necessidade. A
gente muda, o grupo muda, o ciclo muda, então a liturgia tem que
mudar também.
Resumindo a liturgia que estamos
seguindo, nossos ritos se baseiam nos seguintes passos:
Limpeza e organização do espaço;
limpeza dos participantes e acolhida; concentração e meditação;
conexão com os Três Mundos; chamado das Três Famílias; pedido de
bençãos das sagradas direções (leste, sul, oeste, norte e
centro); honra e pedido de bençãos à Erin, ao sagrado carvalho e à
sagrada samaúma; chamado às divindades honradas na ocasião;
passagem da tradição (varia de acordo com o rito ou festival);
leitura de oráculos; agradecimentos; encerramento; confraternização
(banquete, música, danças, conversas).
4. Na sua opinião, quais
similaridades podem ser vistas entre as tribos celtas de outrora e as
culturas tradicionais do Brasil? E algumas diferenças?
Ambas veem a Terra como sagrada, honram
os ancestrais, celebram os ciclos da natureza e entendem que o
universo todo está interligado.
Além disso, os indígenas brasileiros
estão enfrentando o que os celtas antigos enfrentaram: a invasão de
suas terras, a destruição de sua cultura e valores sagrados. Os
indígenas brasileiros são guerreiros, resistentes e lutam pelas
suas terras, sua comunidade, sua cultura e ideais. Assim como os
celtas antigos lutaram em tempos idos...
As diferenças existem claro, vivem em
mundos diferentes, caminham sobre outras terras, reverenciam outros
deuses, contam outras histórias e mitos, se vestem de forma
diferente, falam outras línguas...
5. Há algo que você gostaria
de acrescentar?
Só agradecer por terem me convidado a
participar desse projeto de entrevistas, e desejar a “Corrente RJ”
sucesso, luz, alegria, honra e sabedoria em sua jornada! =)
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