domingo, 17 de janeiro de 2016

A noite das fogueiras: o solstício de verão nas ilhas gaélicas



Sei que passou um pouquinho da data, mas fica pro próximo... (rs)

A noite das fogueiras: o solstício de verão nas ilhas gaélicas


Fonte da imagem: Site “Phys.org”
                Nas terras gaélicas – Irlanda, Escócia e Ilha de Man – onde se tem invernos extremamente rigorosos, o verão, o sol e o calor eram muito bem recebidos e saudados pelas pessoas, além de sua vital importância para as plantações e o gado, principalmente nessa data onde se acreditava que o poder do sol era muito mais potente do que em outras épocas do ano. Nesse texto, vamos analisar os costumes, crenças e significado dessa data cujo foco é a diversão, as festividades, a saúde e a proteção contra as “fadas”. 


Origem, nomes e datas

                Apesar de existirem muitos monumentos pré-históricos nas ilhas gaélicas que são conectados de uma forma ou de outra com os solstícios e equinócios, o solstício de verão, assim como o outro solstício e os equinócios, parecem ter uma influência estrangeira muito forte, e o solstício de verão, em especial, parece ter sido introduzido pelos nórdicos. Por terem muitas associações pagãs, o festival foi condenado na Escócia por volta do século XVI. 

                O festival era conhecido como Féill Sheatain (Feriado de São João) na Escócia, Teine Féil’Eóin (Feriado das Fogueiras de São João, provavelmente) na Irlanda e Feaill’ Eoin (Feriado de São João) na Ilha de Man. Todos esses nomes são de origem cristã, apesar da origem do festival ser ainda mais antiga, o que provavelmente pode ter sido fruto de algum sincretismo. No entanto, politeístas também podem chamar o festival de “A Noite das Fogueiras”, “Meio do verão”, Stad-greiney souree (“Solstício de Verão” em manês) ou Grianstad an tSamhraidh (“Solstício de Verão” em irlandês e escocês).

                Na Escócia, o festival acontecia no dia 24 de junho, e na Irlanda, no dia 23, entretanto, a data poderia variar de acordo com o ano. Hoje, no entanto, muitos preferem celebrar seguindo a data do solstício em si, o que também varia a cada ano, mas normalmente acontece entre os dias 21-22 de junho, no hemisfério norte. Politeístas do hemisfério sul podem decidir inverter a data do festival para que o mesmo se adapte ao verão brasileiro, que acontece normalmente nos dias 21-22 de dezembro, mais uma vez, variando de ano para ano.

Práticas e crenças: as fogueiras 


A fogueira é um dos temas centrais do solstício de verão, e existiam muitas crenças e práticas associadas com ela. Fonte da imagem: Site “Bloguito”

                Conforme já foi escrito, o solstício de verão era a data na qual se acreditava que os poderes do sol estavam mais potentes, portanto, esses poderes eram celebrados e de acordo com a crença folclórica, ajudava a prevenir uma infinidade de doenças, promovia a saúde e certos costumes preveniam as ações malignas de “fadas” e bruxas que podiam azedar o leite, roubar o gado, interferir na produção da manteiga e até mesmo destruir as plantações.

                As fogueiras são um elemento marcante nessa data, e tal prática está presente nos três países gaélicos. Na Escócia, as fogueiras eram acesas após o por do sol; em volta da fogueira, havia muita comida e bebida, pois esta era uma data de muita diversão e bebedeira, além da tradição conhecida de pular a fogueira, visando atrair boa sorte e saúde. O gado também se beneficiava das propriedades mágicas do fogo, e era conduzido no sentido deosil (sentido horário) ao redor dela. Urze e tojo eram usados para fazer tochas cuja finalidade era transportar esse fogo “mágico” da fogueira até a casa, o que era feito normalmente pelo chefe de família. Ao chegar em sua fazenda, o proprietário também circulava com a tocha três vezes em deosil pela sua propriedade para abençoar suas plantações e garantir uma boa colheita. Outras tradições interessantes envolvendo as fogueiras na Escócia, era jogar um pedaço de osso na fogueira, o que provavelmente pode ser o resquício de alguma prática sacrifical de antigamente (alguns autores alegam que, como o festival pode ter origens nórdicas, essa prática ecoe com o costume nórdico da pira funerária de Baldr, um deus com aspectos solares que morria nessa época), e também, a turfa para a fogueira era dada majoritariamente pelos proprietários de cavalos cujos animais tinham sofrido alguma doença ou tinham sido castrados – talvez um costume visando garantir a proteção desses animais.

                Enquanto que na Escócia as fogueiras eram acesas normalmente próximas a igrejas e paróquias, na Irlanda, estas eram normalmente acesas nos topos de colinas, próximas a lagos e poços sagrados com atestados poderes de cura, normalmente posicionadas em um lugar onde o vento podia carregar sua fumaça para os campos de plantações das redondezas. Assim como na Escócia, as fogueiras eram acompanhadas de bebedeiras, diversões, comidas, competições, histórias e também, de peregrinações. Como a bebedeira era intensa, a bagunça também era grande e consequentemente, as celebrações foram condenadas pela igreja por volta do século XIX. Alguns fazendeiros podiam acender suas próprias fogueiras em sua fazenda, mas normalmente, as celebrações eram bem mais comunitárias e todos participavam, sendo a única exceção para as famílias que perderam um ente querido recentemente – a família não participava devido ao medo que o azar se espalhasse pela comunidade se eles participassem das festividades. Se este não fosse o caso, não participar dessas cerimônias podia causar resultados desastrosos para as colheitas. 

                A preparação para as fogueiras eram de grande alegria: as crianças coletavam galhos, e jovens e adultos passavam de porta em porta para pedir uma doação para a fogueira, que podia incluir desde lenha e madeira até velhos mobiliários ou coisas da casa que não eram mais utilizadas, e não contribuir para as fogueiras causava grande azar na casa e na família de quem se recusasse. Assim como na Escócia, as fogueiras eram acesas no por do sol, com uma invocação a Deus e São João pedindo pela “frutificação e lucro de nosso plantio e trabalho”, e ao ser acesa, água benta era jogada em volta dela. 

                A conhecida tradição de pular a fogueira normalmente era feita quando a mesma era reduzida à brasas, onde as pessoas pulavam com o objetivo de promover a sorte, saúde, expulsar doenças, e no caso de mulheres, ter um casamento; quem fosse corajoso o suficiente para saltar com as chamas ainda acesas era congratulado com muitos aplausos, pois significava que aquela pessoa venceu os poderes do mal; as cinzas da fogueira também continham as mesmas propriedades, podendo ser guardada para usos no futuro. Acreditava-se também que manter essas cinzas em casa garantia uma boa sorte para a família. O gado também era passado pelas brasas e suas traseiras eram chamuscadas com um galho de aveleira aceso, e eram colocados brasas nos estábulos e vacarias, assim como também eram atirados nos campos junto com cinzas. Uma varinha chamuscada também era usada para desenhar o símbolo da cruz na porta das casas e nos equipamentos de fazer manteiga, visando talvez, proteção.        

                Na Ilha de Man, as práticas associadas com a fogueira eram praticamente as mesmas da Escócia e Irlanda, com o gado e os campos sendo abençoados e protegidos com tochas de tojo e urze. As fogueiras também eram acesas nos picos dos morros, e uma prática interessante é o rolamento de rodas flamejantes dos picos de morros, que segundo alguns autores, tem o objetivo de simbolizar o declínio do sol a partir dessa data.

Práticas e crenças: o herbalismo mágico 


A erva de são joão está intimamente associada com o solstício, e o folclore diz que ela possui poderes protetores. Fonte da imagem: Site “Gardens Blaze”

                Há diversas crenças associadas com algumas ervas nesse dia, sendo a crença geral é que elas estão mais potentes nessa época do ano. Como já vimos, a urze, o tojo e ramos de aveleira eram usados principalmente devido a sua conexão com as fogueiras, mas na Escócia, a bétula também era utilizada, e seus ramos eram pendurados nas portas das casas como uma forma de proteção contra as fadas e os malefícios da bruxaria. A erva de São João é talvez a planta mais famosa desse festival, sendo seu poder protetor imenso, protegendo desde os malefícios de fadas e bruxas até os danos causados por trovões – a erva podia ser pendurada nas casas, queimada nas fogueiras, colocada nos campos ou até mesmo costurada nas vestes, localizada de uma forma que ficasse sob a axila esquerda do usuário. Também conhecida como “hipérico” ou “Planta de São Columba”, a erva de São João era mais potente se fosse encontrada acidentalmente, ao invés de ser procurada, e protegia também contra as influências do Olho Maligno (ou, o “olho gordo”). Pela sua cor amarelo vivo e suas fortes associações com o festival, pode-se deduzir que esta seja uma planta puramente solar; além disso, as práticas e crenças associadas com essa erva também são bem conhecidas na Irlanda. Similarmente, as sementes de samambaia coletadas no solstício de verão tinham propriedades protetoras, e, além disso, acreditava-se tornar as pessoas invisíveis. As bagas de sabugueiro também protegiam contra as influências negativas da bruxaria e concediam poderes mágicos para a pessoa que a colhia. A artemísia também era procurada na Irlanda com as mesmas finalidades da erva de São João, e como o festival do solstício de verão carrega muitas semelhanças com o Beltane, é provável que flores amarelas também sejam utilizadas nessa época. O feno e a palha também eram utilizadas nas celebrações da deusa Áine, que será explicada mais adiante, e na Ilha de Man, os juncos e a relva-do-caminho (em inglês meadow-grass), nas celebrações para o deus Manannán, que também será visto mais adiante.

Práticas e crenças: outros costumes e crenças

                Acreditava-se que nessa data, as bruxas e as “fadas” estavam mais ativos, e portanto, medidas de proteção eram tomadas para se protegerem dos efeitos negativos que estes poderiam causar – essa era uma crença comum a todos os países gaélicos. Em partes da Irlanda, eram fincados no chão um mastro de madeira chamado de craebh, que eram os centros dos encontros, e eram colocados nos lugares onde as festividades aconteciam.

                Na Escócia existe uma crença interessante de que nesse dia, o cuco entra para a sua casa de inverno, e seu cântico não é escutado após essa data, apesar dele poder ser visto. O codornizão, o cartaxo-comum e outros pássaros conhecidos como “os sete dorminhocos” também passam para o submundo invernal. Assim como o cuco, o melro – mencionado em um poema irlandês que louva o verão – também é um pássaro do verão, mas se ele é um dos “sete dorminhocos”, não se sabe dizer. 

As celebrações de Áine na Irlanda


Áine é a deusa do sol e do verão, comumente celebrada no solstício de verão. Fonte da imagem: Site “Shee-eire”
                Áine Chliar é uma deusa especialmente associada com o festival, em parte por que acontecia em Munster uma celebração a essa deusa nessa época. Tochas de feno e palha eram acesas e levadas para a colina de Cnoc Áine, que se acredita ser a morada mítica dessa deusa. Lá, a fogueira principal do festival era acesa e as tochas, também chamadas de cliars, eram levadas para o topo da colina e para sua base, os campos. Alguns autores dizem que esse costume pode ter sido uma espécie de celebração funerária para a deusa, que é realizado da mesma forma como o povo dos sidhe fazia para ela. A procissão era conduzida por homens e visava uma boa colheita, provavelmente, e o gado também era beneficiado, com o intuito de protegê-los.

                Sendo uma deusa associada com o sol, o calor, o vigor e a abundância, é inegável sua participação nas festividades do solstício de verão. Ela é descrita como sendo a “mulher de melhor coração que já existiu”, e tinha como irmã a deusa Grian, sua contraparte, que representa o sol fraco e minguado do inverno. Sua erva sagrada é a rainha dos prados, que tem seu cheiro fragrante por causa da deusa.

As celebrações de Manannán na Ilha de Man


Manannan mac Lir é o deus gaélico dos mares e tem uma associação com o solstício de verão. Fonte da imagem: Blog “Celtic Vikings”

                Manannán mac Lir (o filho de Lir – “mar”), o deus do mar, também desempenhava um papel especial no festival na Ilha de Man, a ilha em que se acredita ser protegida por ele, em sua forma manêsa, como Manann. Os nativos então pagam o “aluguel” para ele no topo da colina de Barrule, onde sacrificam juncos e relva-do-caminho para o deus. Manannán é por si só um deus marítimo, associado também com a pesca e as tempestades marítimas, que eram frequentes nessa época de verão.

Contos associados ao dia: Conall e a bruxa do trovão


Fonte da imagem: Site “Picture Correct”

                Já foi dito que muitas histórias de fadas são contadas ao redor da fogueira na noite do solstício de verão. Hoje, não sabemos quais histórias específicas eram contadas, mas esse conto folclórico escocês sobre o herói Conall Curlew se passa durante o solstício, e o tema central é a chegada de uma bruxa que traz as tempestades de verão.

                A história começa dizendo que, dentre as muitas bruxas que servem a deusa Beira – a Cailleach Bhear da Escócia – está a Bruxa do Trovão (a Thunder Hag), que viaja pelo céu em uma carruagem puxada por cães vermelhos cercada de nuvens negras e pesadas, atirando bolas de fogo que queimam as florestas. Em um quente e brilhante solstício de verão ela chegou até a Escócia e começou a queimar as florestas, até que o rei pediu a ajuda de um herói, Conall Curlew para derrota-la. No primeiro dia, Conall não conseguiu mata-la pois a bruxa se escondeu entre nuvens negras. No segundo dia, no entanto, Conall armou uma armadilha, reunindo em um único lugar muitos bezerros e potros, que faziam muito barulho. Quando a bruxa chegou, ela foi vencida pela curiosidade e espiou na borda da nuvem, e Conall que esperava ao lado de um monte verde com sua lança na mão, a lançou na bruxa fazendo-a cair no chão com sua carruagem. A bruxa ordenou que seus cães corressem para o oeste, e assim eles fizeram, fazendo com que os barulhos dos trovões diminuíssem cada vez mais. Ao cair, a bruxa passou por cima de uma nuvem, dividindo-a em duas, fazendo cair uma chuva torrencial que apagou o fogo das florestas. O rei ficou grandemente satisfeito com Conall, presenteando-o, e todos ficarem alegres com sua proeza, e a bruxa, não voltou novamente temendo o herói.  

Conclusão

                Vimos até aqui uma visão histórica de como tradicionalmente o festival era celebrado nas ilhas gáelicas, valendo lembrar ainda que as práticas aqui descritas, embora talvez possam ser resquícios de práticas pagãs pré-cristãs, ainda assim foram praticadas em uma época cristã, e não estão claras, sem sombra de dúvidas, quais práticas são genuinamente pagãs e quais não são.

                As festividades seriam melhores feitas se celebradas com um grupo, mas como isso nem sempre é possível, pode-se celebrar o festival de forma “solitária”. Vimos também que a fogueira é um elemento central na prática desse festival, cujas propriedades são protetoras, curativas e são capazes de trazer a prosperidade e abençoar; como hoje nem sempre é possível acender uma fogueira, visto que uma parte dos nossos moram em apartamentos ou até mesmo precisam esconder suas crenças da família, uma pequena chama em um recipiente ou até mesmo uma vela pode se tornar o ponto central de suas celebrações. As ervas tem também um destaque no dia, e é da crença geral de que as mesmas possuem suas propriedades de forma mais potente nessa data – sendo assim, uma forma de celebrar o festival seria fazer a colheita de ervas para trabalhos de cura, prosperidade, bênçãos, etc.; caso você tenha acesso as ervas “tradicionais” da data, elas podem decorar o altar para as celebrações. Quanto às divindades, tradicionalmente Áine e Manannán mac Lir são associados ao dia, e estes podem ser honrados com as oferendas que você achar apropriado para eles: para Manannán, além dos tradicionais juncos, pode ser ofertado água do mar, conchas, maçãs, etc., e para Áine, além da rainha-dos-prados, uma sugestão seria uma poesia, uma chama, flores das estações – especialmente as amarelas ou vermelhas, uma fragrância, símbolos solares, miniaturas de gado – principalmente a égua, a porca e a vaca, e outras coisas que sua intuição julgar apropriadas. Apesar de essas duas divindades serem mais conhecidas nesse dia, outras divindades solares também podem ser cultuadas, e, como é um dia especial para as plantas também, alguns podem achar apropriados cultuar Airmed com seu irmão Miach.

                Além disso, muitos contos de histórias, músicas, competições, danças, comidas estão tradicionalmente vinculados às celebrações, sendo assim, você pode adotar estes com seus amigos e familiares. Com essas dicas, esperamos que suas celebrações sejam abençoadas e que os deuses do verão e da fartura possam abençoar você e a sua família, e até que estejam orando para Eles novamente, que os deuses vos protejam na palma de suas mãos. Sláinte.


Bibliografia e fontes consultadas


Leitura recomendada

                Apesar de não ter me baseado nesses links para produzir o texto, podem ser de interesse para alguns:

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